Se Eu Fosse Você, de Daniel
Filho (Brasil, 2005)
por Ricardo Calil
O mistério da grande angular
De acordo com nota publicada na coluna social do jornal “O Globo”,
Daniel Filho desejou “más críticas” a sua colega Carla Camurati
na pré-estréia de Irma Vap - O Retorno. Segundo o diretor,
essas duas palavras teriam o poder de garantir o sucesso de um
filme, da mesma forma que falar “merda” ou “quebre a perna” ajudaria
os profissionais do teatro. O subtexto não poderia ser mais claro:
a crítica (de merda?) não entende o que vai no coração do público.
No caso de Se Eu Fosse Você, produção da Total Filmes dirigida
por Daniel, a fórmula funcionou (mas não no de Irma Vap,
diga-se de passagem): o filme teve mais de 3,6 milhões de espectadores.
Infelizmente, esta má crítica não poderá inflacionar ainda mais
esses números, visto que a carreira da produção nos cinemas chega
ao fim. Mas, com alguma sorte, ela pode dar uma pequena contribuição
para alavancar o futuro lançamento em DVD.
A esta altura, não dá para escrever sobre Se
Eu Fosse Você ignorando o enorme sucesso da comédia nas bilheterias.
Mas encontrar as razões de um êxito parece sempre um exercício
hipotético. Claro, o apoio do braço cinematográfico das Organizações
Globo e a presença das “pratas da casa” Tony Ramos e Glória Pires
(que, ainda por cima, faziam simultaneamente um par na novela
Belíssima) são razões importantes, mas talvez insuficientes
– a julgar pelo recente fracasso de Mais Uma Vez Amor,
outra parceria da Total Filmes com a Globo protagonizada por atores
de sucesso em novelas. Vamos partir, portanto, de um princípio
menos conspiratório sobre o sucesso de Se Eu Fosse Você:
o filme simplesmente conseguiu a empatia de seu público. A meu
ver, isso ocorreu por duas razões principais: a acertada escolha
de filiação cinematográfica (a comédia italiana, em vez da americana
clássica) e o memorável desempenho de Tony Ramos.
O mote de Se Eu Fosse Você é a troca de
sexos. Apesar de formaram um casal aparentemente feliz da classe
média-alta da Barra da Tijuca, Cláudio (Ramos), dono de uma agência
de publicidade, e Helena (Glória Pires), professora de música,
têm dificuldades para entender os problemas um do outro. Por conta
de uma certa conjunção astral, os dois acordam um dia com os corpos
trocados e têm que assumir as rotinas íntimas e as atividades
profissionais do parceiro. Ela, no corpo dele, precisa conquistar
uma conta de uma cliente para que a agência não seja vendida.
Ele, na pele dela, precisa reger um coral infantil em uma apresentação
aos pais.
A grande tradição da comédia sobre a troca de
sexos vem do cinema americano, e tem entre seus destaques a obra-prima
Quanto Mais Quente Melhor (1959), de Billy Wilder, mas
também Tootsie (1982), de Sydney Pollack, e Vitor ou
Vitória? (1982), de Blake Edwards. Embora esses filmes dependam
muito da caracterização de seus protagonistas, eles se sustentam
sobretudo em diálogos e situações sofisticados – não raro de subtexto
político – sobre a guerra dos sexos. Não é essa a agenda de Daniel
Filho. Apesar da subtrama da conta publicitária ser quase um plágio
do americano Do Que as Mulheres Gostam (2000), Se Eu
Fosse Você descende de uma certa tradição de comédia italiana,
que se baseia acima de tudo no trejeito físico e na piada chula.
O maior trunfo do filme é a naturalidade com que
transita entre a comédia ligeira e a comédia vulgar, entre a fina
observação das diferenças sexuais e o reforço de estereótipos
clássicos (como o da “bichinha”, da “secretária gostosa” e assim
por diante). Em seus melhores momentos, Se Eu Fosse Você,
lembra uma reedição do espírito politicamente incorreto do franco-italiano
Gaiola das Loucas (1978). Nos piores, uma transposição
ao cinema de Zorra Total.
Se o filme não permanece muito tempo nesse último
campo, o mérito é, em grande parte, de Tony Ramos. Mesmo nos momentos
mais grosseiros do filme, o ator parece incapaz de perpetrar uma
vulgaridade. Ele sempre consegue emprestar alguma doçura a seus
personagens, transmitir o prazer que sente ao interpretá-los e
mostrar-se confortável nos mais variados registros – o que o torna
um intérprete raro, até agora subaproveitado pelo cinema brasileiro,
da estirpe de um Marcello Mastroianni. Já Glória Pires, ainda
que defenda seu papel com elegância, revela-se menos à vontade
na comédia cinematográfica do que no melodrama televisivo.
Mas, antes que os elogios deste texto ofendam
o diretor, vamos aos problemas do filme. Como outras produções
da Total Filmes, Se Eu Fosse Você parece ter sido feito
a toque de caixa – o que não chegaria a configurar um grande defeito
se esse tipo de filme não custasse cada vez mais caro no Brasil.
A maioria das cenas deixa a impressão de ter sido filmada às pressas
e “nas coxas”. O resultado desse desleixo é uma deficiência cada
vez mais comum no cinema nacional dos últimos anos: a síndrome
da carência da grande angular. Essas lentes, geralmente usada
para filmar planos abertos, parecem ter se tornado um objeto sagrado
nos sets de filmagens brasileiros, elemento misterioso cada vez
mais temido e menos utilizado.
Sem cair na interminável (e muitas vezes infrutífera)
discussão sobre o que é cinematográfico e o que é televisivo,
partamos do princípio que a comédia física, como o sexo e boa
parte dos esportes, é uma arte de interação dos corpos. Portanto,
ela precisa que estes sejam mostrados em todo seu esplendor para
fazer sentido. Filmar uma comédia em close-ups e planos
médios, como faz Daniel Filho em Se Eu Fosse Você, pode
ser tão brochante quanto ver uma partida de futebol em que se
mostram apenas os rostos dos jogadores.
O momento mais exigente do filme para seu diretor
é a seqüência em que Claudio, no corpo de Helena, tem que reger
o coral infantil na apresentação aos pais. Ali Filho não consegue
evitar o uso da grande angular, já que precisa mostrar dezenas
de crianças ao mesmo tempo. O resultado é tão ginasiano quanto
a garotada em cena. Nessa passagem, Daniel Filho conseguiu, de
maneira tortuosa, aquilo que muitos cineastas mais talentosos
buscam sem sucesso: a harmonia total entre forma e conteúdo.
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