Se
Eu Fosse Você 2, de Daniel Filho (Brasil, 2008) por
Rodrigo de Oliveira Quem
tem medo de um fenômeno?
Existem parcelas iguais
de uma arrogância muito anunciada e da mais humilde confissão de seus próprios
pés-de-barro quando Se Eu Fosse Você 2 tenta justificar sua existência
a partir da narração rádio-cafona de uma conjunção astral e climática que explicaria
ser possível sim que dois raios caíssem no mesmo lugar. Afinal, entram e saem
os verões, e temos sempre que lidar com um novo filme de Daniel Filho, com novas
entrevistas bombásticas nos cadernos culturais mais respeitados do país, com esse
problema que ele próprio se incumbe de alardear que é o da viabilidade de um cinema
popular de entretenimento no Brasil. A arrogância: Se Eu Fosse Você 2 é
um “objeto natural do mundo”, descende do cosmos como tiro certo de sucesso e
bilheteria porque não passa da soma de ingredientes infalíveis organizados divinamente
por um diretor que, depois de seis dias de trabalho e mais um de descanso, passará
a eternidade colhendo seus dividendos e administrando suas repercussões. Os pés-de-barro:
nem todo o conhecimento privilegiado que Daniel Filho garante ter sobre o gosto
do público de cinema do país pode lhe oferecer qualquer segurança em relação ao
retorno de seus produtos (e isso fica ainda mais claro quando vemos que, para
cada blockbuster nascido em sua produtora, existem pelo menos quatro fracassos),
e assim colocar um novo filme na praça é matéria para astrólogos e não para analistas
de mercado, e tudo no fim depende de uma dose de acaso. Mas
agora estamos há 5 milhões de espectadores de distância das duas teses anteriores,
e é possível perceber com um pouco mais de clareza (e, sobretudo, com muito menos
temor e preconceito) o que há em Se Eu Fosse Você 2 que o torna um modelo
de fato, um produto consciente de sua própria construção e efeitos. A começar
pelo fato de que aqui assume-se a natureza de modelo: não é mais o caso de disfarçar
o ímpeto televisivo e as facilidades dramatúrgicas, a afirmação de certas regras
de conduta no bem-filmar “para toda a família”. Uma matriz foi descoberta com
o primeiro filme da série, ela absolutamente não é nova, mas também só não se
esgota porque sabe bem que precisa de dedicação e trabalho para reproduzir o óbvio
– e é exatamente aí, na recusa de suas próprias banalidades, que ficaram pelo
caminho os Jorges Fernandos, Maurícios Farias e Wolfs Mayas da vida. As substituições
de casting são precisas, nesse sentido: como o amigo canalha, sai Thiago
Lacerda e entra Cássio Gabus Mendes, como ameaça vagabunda à felicidade do casamento
sai Danielle Winits e entra Viviane Pasmanter, como oráculo dúbio de sabedoria
idosa e incorreção cômica sai Glória Menezes e entra Chico Anísio. O foco no elenco
B e C da Rede Globo não serve apenas para diminuir o espaço dos créditos no cartaz
e dos cachês a serem pagos. Existem personagens de fato no quadro, que exigem
rostos próprios e presenças que digam alguma coisa para a cena em que se inserem,
então, para variar, por que não escolher os atores certos para interpretá-los?
A
correção de rota mais significativa, no entanto, está no próprio roteiro. Os medleys
de comédia física de Tony Ramos e Glória Pires continuam lá, mas há uma razão
interior agora que os torna menos aleatórios e festivos – lida-se com uma separação,
com a gravidez de uma filha adolescente, e eventualmente com a gravidez do próprio
casal de meia-idade, e cada uma dessas situações já trazem embutidas as deixas
dramáticas onde se pode ecoar a tal troca de corpos. E que não se espante o espectador
mais programático com a falta das elucubrações anteriores sobre a natureza do
ser masculino e feminino e sobre como um evento bizarro como esses poderia iluminar
nossa mentalidade sexista. Se Eu Fosse Você 2 deixa claro, sobretudo com
uma ótima seqüência de compra de roupas pelo marido, que nunca se tratou exatamente
de um exame de almas e gêneros: o que sempre estivemos assistindo é Tony Ramos
interpretar uma bicha afetada e Glória Pires fazer sua versão de uma lésbica empedernida,
e sigamos em frente com isso. Ao mesmo tempo, Se Eu Fosse
Você 2 se intimida exatamente quando é chamado a ocupar esse espaço de fenômeno,
um espaço exigido por seu modelo importado, pelas bravatas de Daniel Filho e pelos
resultados da bilheteria. Há uma vontade clara de tornar a narrativa mais “moderna”
aos olhos de um público acostumado com o grande filme americano, mas nunca se
trabalha de fato para uma agilidade e inteligência dos cortes e da construção
mais fluente dos planos – pega-se dois ou três truques de pós-produção ainda muito
toscos (as embaixadinhas que Glória Pires faz, por exemplo), inunda-se a tela
com um tanto de split-screens e joguinhos de montagem paralela e pronto,
está dado o verniz do “entretenimento atual”. E há algo na própria raiz daquela
comédia que parece sempre muito medroso, incapaz de se arriscar demais nas implicações
daquilo que há de mais valioso no material disponível. É uma barreira imposta
pela própria condição de “tour de force cômico de grandes atores sérios”
que é inseparável do projeto do filme, mas que sempre se relativiza quando Chico
Anysio está em cena, justo ele, o representante decano do velho humor de bordões
e de insurgência moral e política, exatamente as searas mais evitadas por Daniel
Filho. O limite desse cinema-fenômeno que está pensando
ainda que o caminho não é abarcar um público diverso, mas qualquer público
que passe pela frente (e que, assim, acaba assumindo compromissos demais, muitos
deles contraditórios entre si) está sintetizado numa seqüência-chave que é muito
oportunamente esvaziada pelo filme. É quando Cláudio e Helena, desesperados pelo
reajuste de seus corpos, decidem repetir a experiência “da última vez”, quando
a troca fora desfeita com sexo. A armação é curiosíssima, Helena ajeitando travesseiros
e abrindo a braguilha da calça como se fosse um cafajeste, Cláudio dizendo que
se sente “uma vadia”, mas a hora do vamos-ver é justamente a que nunca veremos:
enquanto a transa se dá no quarto ao lado, a câmera mergulha na vista do apartamento
de frente para a praia. Não demora nem cinco segundos para que já tenhamos o resultado
negativo, a decepção, e um plano “lindamente” fotografado, com a luz do sol poente
iluminando os atores enquanto a câmera enquadra Ipanema em todo seu esplendor,
com o requinte de ouvirmos Luis Melodia e um arranjo de violão e cordas ao fundo.
Diante de um evento definidor de tudo aquilo que o filme parece acreditar ser
seu maior valor (um homem mulherzinha, uma mulher machona), e da possibilidade
de avançar verdadeiramente sobre aquilo que o filme anterior apenas esboçara,
opta-se pela supressão radical e pelo bom-gosto duvidoso. Enquanto não começar
a usar sua aceitação popular para despertar mais que o simples prazer da segurança
pelo conhecido, e estabelecer uma visão e uma marca sobre os projetos que tem
nas mãos (alguns, como este, honestamente bons), Daniel Filho continuará a ocupar
esse espaço paradoxal do homem-que-tudo-sabe que, no entanto, renova a cada estréia
a torcida e as velas acesas para que caia outra chuva de raios. Fevereiro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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