ensaios
Segundos passos
por Cléber Eduardo
O segundo longa-metragem é um fenômeno dos
mais interessantes no cinema, por marcar aquele momento no qual
nos emancipamos da impressão única de um primeiro filme, com seu
impacto ou frustração típicos de um contato inicial, e nos assentamos
sobre os passos de um cineasta com um pouco mais de certezas sobre
sua percepção. Curiosamente, um grande número de diretores dos
longas de ficção que participaram da competição da Première Brasil
2006 do Festival do Rio (e que agora estarão na competição brasileira
da Mostra de São Paulo) estão nos mostrando seus segundos filmes,
o que torna a safra deste ano dos festivais especialmente interessante,
uma vez que alguns desses realizadores são candidatos a figurar
entre nossos novos autores, todos ainda em construção, mas já
propondo questões e caminhos estéticos e dramatúrgicos. Se podemos
seguir acompanhando os novos trabalhos de Daniel Filho (o veterano
popular), Cacá Diegues (o cinenovista mainstream), Ruy
Guerra (um tanto asfixiado em sua autoralidade), Antonio Carlos
da Fontoura (“renascido para as trevas”) ou Nelson Pereira
dos Santos ( surpreendendo sem brilhar em sua terceira idade),
é a geração pós-94 que desperta maiores expectativas, seja porque
podem confirmar vitalidades esboçadas em suas estréias, seja porque
podem mudar de rumo no andamento de seus percursos, seja ainda
porque deverão ser os protagonistas do cinema da próxima década
(e nisso vale notar que havia ainda três estreantes e Tata Amaral,
com seu terceiro longa, fechando a lista da competição de ficção
da Première Brasil – numa quase totalidade de estreantes pós-94).
Claro que já alimentamos algum tipo de expectativa
por esses segundos filmes, a partir da primeira impressão que
nos deixavam seus primeiros filmes, por isso tendemos a não chegar
com os olhos virgens a nenhum deles. Assumindo uma visão sobre
eles em relação com os filmes de estréia, procuro aqui apenas
entender o início dos caminhos cinematográficos percorridos por
Cao Hamburger (de O Castelo Rá-Tim-Bum a O Ano em que
Meus Pais Saíram de Férias), Ricardo Elias (de De Passagem
a Os 12 Trabalhos), Karim Ainouz (de Madame Satã
a O Céu de Suely) e Heitor Dhalia (de Nina a O
Cheiro do Ralo). Cabe lembrar que além destes, houve ainda
o segundo longa de Flavio R. Tambellini, O Passageiro – Segredos
de Adulto, que não pude assistir; e o segundo longa de Jorge
Duran (Proibido Proibir), que não incluo por se tratar
de um cineasta de uma outra geração. Haveria ainda cineastas de
documentários de segundo longa (como Kiko Goifman ou Cão Guimarães),
mas nos limitaremos a falar aqui dos trajetos de dramaturgia ficcional.
Dos quatro cineastas que escolhi analisar, vale notar como a maioria
ambientou sua ação em centros urbanos e na contemporaneidade.
Apenas um foi ao passado (Hamburger), um único foi ao sertão (Aïnouz
– único também a ter uma mulher como protagonista). Nenhum deles
tem finais de celebração ou de conciliação, havendo, em todos
os casos, desfechos de ruptura com a normalidade, de perda da
vida ou de algum referencial. Todos são reflexos, sim, de um certo
olhar atual – marcado pelo bode ou pelo lamento.
Dos quatro, Hamburger foi quem estreou há mais
tempo (em 1999), e a demora do segundo filme é sintoma não necessariamente
da dinâmica de processo do diretor, mas certamente do ritmo de
nosso "sistema de produção". Nesses sete anos,
seu universo, se mudou um pouco, também se manteve bastante coerente.
Novamente, há uma criança como protagonista – mas, mais que isso,
um olhar de criança. Mas aqui já há também a primeira mudança,
porque, se O Castelo Rá-Tim-Bum parecia um olhar "sobre"
a criança e seu universo, O Ano em que Meus Pais Saíram de
Férias sustenta-se sobre o olhar "da" criança, criando
uma maior sintonia e proximidade entre realizador e personagem.
Em Castelo, o mundo de Nino era estranho a nós, portanto,
o estranhamento era nosso. Em O Ano em que Meus Pais Saíram
de Férias, o estranhamento é de Mauro, diante de "nosso"
mundo. E será por meio do olhar dele que esse nosso mundo pode,
também, nos parecer novo para nossa experiência. O olhar é de
fora para dentro e não de dentro para fora: se Nino vislumbrava
algo fora de seu castelo, ao passo que Mauro, já fora de seu lar,
tenta adaptar-se com resistência a outro ambiente.
Percebe-se
ainda uma transição da imagem sombria para outra mais suave, de
um formalismo emocional para sentimentos mais derramados (não
com perda da sobriedade). A própria câmera ganha em agilidade
e a troca de um plano para outro valoriza o cruzamento de
olhares. Hamburger não demonstra desejo apenas de narrar seu roteiro,
mas também de explorar as possibilidades de "como se mostrar"
um determinado acontecimento, injetando contemporaneidade plástica
e rítmica em um universo dos anos 60/70, revisitado com a mediação
de uma sensibilidade infantil. Hamburger reformata seu projeto
inicial de entrar no mundo da criança – pelo fabular – para agora
trazer o mundo da criança até o nosso (e o da História). Seu
risco nesse processo é não integrar o filme "de" criança
(não sobre) com o filme sobre o mundo dos adultos, o que, se tudo
desandasse, daria a impressão de o contexto histórico estar lá
só de papel de parede, ou ser o verdadeiro motivo para se contar
a história da criança. Embora por vezes pareça haver mais de um
filme na mesma narrativa, a maior parte do tempo esses filmes
parecem entrelaçados e dependentes uns dos outros, não sem algum
esquematismo dramático (a relação Copa do Mundo/retorno da mãe).
De qualquer forma, da estréia a esse segundo filme, Hamburger
nos parece, no atual panorama, um realizador protagonista da expressão
cinematográfica no Brasil.
Em matéria de protagonistas, porém, nenhum é tão
expressivo, nessa avaliação, quanto Karim Aïnouz. Madame Satã
permanece e é alterado em O Céu de Suely. Permanece pela
política do corpo como eixo central e a atitude política pautada
por um olhar libertário para as escolhas dos protagonistas, assim
como se mantém a dinâmica de câmera íntima – não no sentido de
espiar a intimidade dos personagens, mas de manter uma relação
de intimidade com eles, de uma proximidade sem julgamentos e decifrações
com moral da história. No entanto, se Satã e Suely/Hermila usam
o corpo como ferramenta de afirmação/emancipação (ele como corpo-arma/prazer,
ela como corpo-mercadoria/prazer), o tom é bastante diferente.
Madame Satã é filme de impacto, performático, de berros
e cantos, de exteriorização dos tumultos internos, ao passo que
O Céu de Suely é filme mais contido, de silêncios, circunspecto
mesmo ao ar livre, mas também mais misturado a seu ambiente.
Satã lida com a questão da auto-construção cultural, em um Brasil
atemporal, ainda que localizado historicamente: um filme de época
sobre algo permanente (a necessidade política de se descategorizar
identidades redutoras e estigmatizantes). Suely/Hermila lida com
a questão social-econômica, já que o dinheiro, em última instância,
é o motor dos conflitos ali colocados. Satã luta para se impor
sem negociação, sem diplomacia em nome da aceitação, enquanto
Suely quer cair fora, começar de novo, recusar o espaço do qual
parte de coração ferido. A ruptura com o espaço – mais que ruptura
no espaço (caso de Satã) – manifesta-se mais uma vez, tornando-se,
desde Terra Estrangeira (passando por Um Céu de Estrelas,
Abril Despedaçado, O Príncipe, Brasília 18%)
uma constante nessa produção recente.
A partida também marca os dois filmes de Ricardo
Elias – ambos iniciados com o retorno de seus personagens após
um tempo “fora”: De Passagem começa com o retorno do protagonista
à periferia paulista após uma temporada em uma escola na qual
usa uniforme de autoridade (símbolo de sua inserção na lei). Em
sua volta à origem, ele encontra sinais de violência do passado
e de suas extensões no presente, restando ao final partir de novo.
Já em Os 12 Trabalhos, o retorno é da Febem, em movimento
portanto inverso ao de De Passagem. Vemos um movimento
do crime para a punição e da punição para a segunda chance, para
a ordem, para vida legal, o que, de acordo com as circunstâncias,
será só uma fase, não sem bons momentos, mas apenas um parênteses
antes da fuga rumo ao mar (como em Abril Despedaçado).
Os
dois filmes têm dinâmicas diferentes, mas alguns pontos de contato
– entre os quais a escolha da classe social e do ambiente da periferia,
assim como o trânsito pela cidade de São Paulo. Mas, se De
Passagem é mecânico em seu andamento, com momentos irregulares
de atuação, com uma tensa convivência entre os tempos cronológicos
(passado e presente) e um tempo de cena incomum hoje no Brasil
(mas sem energia ou rigor para justificá-lo), Os 12 Trabalhos
é mais dinâmico, com atuações mais coesas (sobretudo os coadjuvantes),
com imagens livres em seus fluxos pela cidade, e maior integração
entre os personagens e São Paulo. O que ainda fragiliza Os
12 Trabalhos (e fragilizava De Passagem) são cenas
específicas, que revelam o esforço de se injetar um afeto no ambiente
retratado, de se propor um respiro em meio às adversidades, sem
conseguir integrar esse desejo a uma dramaturgia capaz de incorporá-lo
sem fazê-lo parecer militância por um certo tipo de olhar. Situações
como o flerte no vagão de metrô em De Passagem, ou a seqüência
do aeroporto e do beijo quase ao final em Os 12 Trabalhos,
são exemplares dessa ainda não plenamente bem resolvida procura
política pelo afeto. Mas o olhar agora está mais próximo do mundo
representado, menos de observador distante e mais solidário com
as experiências vividas. Me parece claro um progresso entre o
primeiro e o segundo filme de Elias, o que, com rigor, só estimula
aguardar quais serão os próximos passos e para qual rumo.
Não se pode dizer exatamente o mesmo de Heitor
Dhalia na passagem de Nina para O Cheiro do Ralo,
ainda que ambos sejam, de qualquer forma, filmes complementares:
Dhalia demonstra em ambos o desejo de observar o que de pior o
ser humano pode fazer quando da posse do poder, mas também uma
filiação a um olhar contemporâneo para percepções em colapso (e
há indícios disso em filmes em fase de realização). A questão
está em como desenvolver um olhar sobre isso. Passa-se da subjetividade
perturbada e da experiência radical de uma jovem vítima de seu
mundo (Nina) para o retrato da perturbação de um sujeito
sádico no exercício de seu pequeno e tirânico poder (O Cheiro
do Ralo). Em Nina, a revolta burguesa era justificada
em sua expressão mais limítrofe (a violência), pois a protagonista,
embora não pague o que está devendo, lida com a caricatura do
mal em seu cotidiano – e, para se livrar dele, está legitimada
pelo filme a recorrer ao assassinato da senhoria. Já O Cheiro
do Ralo inverte o pólo de forças e, depois de aderir sem filtros
críticos ao protagonista, passa-lhe uma rasteira com uma punição.
É
como se agora Nina fosse centrado na velha tirânica, aderindo
ao humor proveniente de sua estratégia de humilhação sobre quem
depende dela. Um riso maldoso é cultivado, o riso de quem ri com
o poder, com o que o poder, em qualquer instância, tem de mais
nefasto. Estamos com o protagonista e, se ele se mostra um crápula,
somos convidados a achar graça. Heitor Dhalia aparentemente sai
do referencial expressionista de Nina (também marcado pela
estilização artificializada dos anos 80) e passa a flertar com
alguns procedimentos dos indies mainstream dos 90-2000
(Todd Solondz, Paul Thomas Anderson), sem demonstrar nessa transição
nenhum ganho em matéria de mise-en-scéne, optando comodamente
em investir no solo performático e auto-paródico de Selton Mello.
Se Nina tem fragmentos retidos na memória (como a festa
na qual o olhar de Sabrina Greve diz tudo ao ver a protagonista
indo ao banheiro com um rapaz, olhar esse repetido ao final em
um outro registro, não menos expressivo), O Cheiro do Ralo
não oferta nenhuma imagem digna de ser memorizada.
Nesse pequeno panorama de continuidades de filmografias
recém iniciadas (a ser completado em breve pelos novos filmes
de Lina Chamie, Cláudio Assis, João Falcão, Paulo Caldas e José
Araújo), a soma das partes é positiva, mas as partes nem sempre
o são – o que é natural em qualquer panorama de realizadores em
começo de percurso. De qualquer forma, um segundo filme ainda
não estabelece uma marca, uma identidade, um universo autoral
– embora, em alguns casos (especialmente os de Aïnouz e de Elias),
esses sinais personalizados estão esboçados de forma explícita,
o que não significa que venham a insistir nessas tendências manifestadas
até aqui. Não podemos esquecer ainda de destacar que Lais Bodansky
filma atualmente seu segundo longa (depois de Bicho de 7 Cabeças,
filme do qual sou entusiasta) e que o segundo filme de José Eduardo
Belmonte, A Concepção, está para mim entre os três filmes
mais importantes lançados em 2006 (e não me refiro apenas a filmes
brasileiros). Visto desta forma, o momento do cinema brasileiro,
e desta geração, não pode deixar de entusiasmar.
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