Se
Nada Mais Der Certo, de José Eduardo Belmonte (Brasil, 2008) por
Paulo Santos Lima A
busca pelo encontro com a vida
Leo escreve uma
aflita carta a Diogo. A cada palavra avançada, sua voz reproduz o escrito. Leo
é o narrador de si próprio que lança seu relato a um destino incerto: o amigo
Diogo é parte do problema de Leo em Se Nada Mais Der Certo. Diogo
depende dele, que lhe dá alguns trabalhos numa publicação
ordinária qualquer. Leo pede socorro a um amigo que em nada lhe corresponderá.
Seriam palavras ao vento, perdidas, estas que estão no começo de
Se Nada Mais Der Certo. Mas a platéia espectadora o ouve, num belo encontro
que faz de Leo também um narrador do filme. Estamos num
filme de José Eduardo Belmonte, cineasta cuja obra circunavega a questão do encontro.
Encontro não só de seres, de corpos. Mas também alguns outros encontros: entre
câmera e objetos filmados, entre discurso extra e intradiegético, entre o real
e delírio mental, entre músicas e ruídos selvagens, entre os filmes do americano
Cassavetes e os dos belgas Dardenne.
Encontros fundadores de estéticas, e cujas colisões fazem um extrato cinético
que vem se mostrando um dos mais pertinentes do Brasil, muito por estar em diálogo
ao que se está fazendo de cinema hoje, e sobretudo por traduzir um estado de mundo
em perigo (não por acaso título do seu longa anterior). Se Nada Mais Der Certo
fala de pessoas lutando pelas brechas para sobreviver nessa ruína. Leo (Cauã Reymond)
já nos fala, neste dramático início, que teve de pagar ao fisco uma grana que
jamais devera, por um injusto erro de processamento de dados. Jornalista freelancer
(nesses tempos de instabilidade, vicejam os trabalhos autônomos), não recebe o
pagamento de seus frilas. Enfim, falta-lhe grana, com aluguel para pagar,
cuidar da esposa anoréxica e viciada, o filho dela, o salário da empregada etc.
E hoje, sabemos, uma de nossas maiores tragédias é justamente não termos um tostão
no bolso, pois a vida cobra caro por seu acesso. Leo
poderia bem ser um dos personagens de A Concepção (2005), justamente após
o fracasso da pequena “revolução” que eles empreenderam contra o sistema, quando
criaram uma comunidade alternativa para sabotar as instituições, impondo-se sob
múltiplas identidades, libertos dos papéis e preconceitos burgueses. Negaram a
ordem burguesa-capitalista para, ao final, se reenquadrarem nela. O ótimo cinismo
de Se Nada Mais Der Certo é que o repúdio aos mecanismos de controle persiste,
mas esses personagens estão atordoados e sem eixo de luta, são guerreiros vencidos,
devidamente engrenados no sistema, nas roldanas mais externas – e por isso que
peitarão a ordem pelas rachaduras da máquina. O que para os concepcionistas do
outro filme era idealismo e revolução, agora é pragmatismo e malandragem para
um Leo à beira do abismo, uma traficante (Caroline Abras) e um taxista (João
Miguel), nessa união menos ideológica que existencial e afetiva. Leo,
pai de família fora da porra-louquice, diz querer ferrar o sistema, mas titubeia
quando o risco aperta, quando o projeto é roubar dinheiro dos poderosos da política
nacional (talvez somente Nelson Pereira dos Santos em seu Brasília 18%
e Cláudio Torres com seu Redentor chegaram, no cinema recente, ao nível
do que Belmonte empreende aqui como imagem da nossa selva política, com os digníssimos
falando à TV como fantasmas, uma poluição executiva de terno e gravata de vampiros
magnatas politiqueiros). É nesse cenário politicamente desértico que o cinema
de Belmonte cria imagens muito mais politicamente pertinentes ao seu tempo histórico
– à medida de Subterrâneos, seu primeiro longa, mas bem mais avante de
A Concepção. Voltamos, então, à questão do encontro, que esquadrinha todos
os procedimentos de José Eduardo Belmonte. O drama ganha aqui uma maior feição:
os encontros são desesperados, acontecem no calor das ações e na própria ação
da filmagem, tudo quase sempre tresloucado. Não
há como seguir adiante sem falar de Marcin, uma caracterização transbordante de
Caroline Abras. Ela é o sol que se faz gelado e fogareiro norteando todos os personagens
do filme, e não apenas por transitar por entre todos: ela é o próprio ímpeto motivacional
de Leo. Ela, tentando encobrir o que há de feminino em seu corpo, à custa de roupas,
axilas longe da gilete, cabelos curtos e nenhuma maquiagem, ainda assim é uma
mulher – sobretudo quando ao lado de Leo, num encontro de vidas que faz surgir
um dos mais belos amores dos últimos tempos no nosso cinema nacional. Marcin é
menino, mulher lutando como homem, machão terno como as doces donzelas, pessoa
malandra para a vida, mas ingênua para o coração. Cauã dá o melhor se si, João
Miguel tira de letra, mas são as cenas com Caroline Abras dentro de sua Marcin
que conferem os mais lindos momentos de Se Nada Mais Der Certo. E
Marcin, que já nos primeiros tempos de convivência com Leo tenta-lhe dar um beijo,
é a própria tradução do que Belmonte faz por sua imagem. Se esse beijo driblado
por Leo diz muito mais à celebração dos afetos e correspondências diante da iminência
de fim da humanidade, o estilo adotado pelo diretor também parece alternar o planejamento
prévio (que há, isso grita aos olhos, não demeritoriamente) e a solução do momento
da cena. Sim, muito a ver com o que Cassavetes fazia (e fizera, sobretudo, em
Faces), mas que é pauta também dum cinema indie encantado com esse
que é um dos mais expressivos cineastas americanos, e com outros cinemas atuais
(veja como a semelhança da câmera que age nas seqüências iniciais de Ballast).
A força da idéia de “instante”, de captação do “momento” da filmagem, é justamente
responder ao que o filme está a falar, que é justamente a ausência de projeto,
que fortalece a idéia . As
incorporações que Belmonte faz são de uma liberdade que nenhum de seus personagens
chegou perto: o uso dos Saltimbancos como hino da ação “politizada” dos amigos,
a praia como filmada como a era de Aquarius, frases de cartela impressas sobre
as imagens em Super-8 que, na verdade, são apenas dados visuais, jamais organizadores
de capítulos ou linha narrativa. Uma idéia de fragmento e atenção à experiência
que faz todo o sentido para personagens que são órfãos de um Estado pai e desquitados
de uma noção de futuro e processo existencial-histórico-político. Não à toa, a
família aqui é a resposta mais magnífica ao parque mal-assombrado do país em crise
moral, política e econômica: uma família que nasce fora da convenção, e sim formada
pelos afetos e contatos humanos, que faz com que um enteado seja filho, o taxista
a bacana empregada quebre todos os galhos, uma traficantezinha raivosa torne-se
uma candura de luz e vida, o travesti que é um filho da mãe que acaba virando
vítima. Pode-se dizer, então, que este é o mais ousado e avançado dos filmes de
Belmonte, mais politizado também, porque a política será feita pelo corpo, no
fundo das intimidades, indo-se a fundo nos sentimentos para seguir em frente no
marasmo letal do fim da história do homem. Parece mais evidente,
assim, que o filme siga por um caminho que vai chegar até “a origem da vida” (nome
de uma cartela) – Belmonte chega num de seus planos mais bonitos e totais: o plano
próximo ao sexo desnudo de uma mulher. É Marcin, saberemos a seguir, que finalmente
encontra o corpo de Leo, num sexo que é sutilmente mostrado, quase citado de longe,
porque, afinal, não é a sexualidade em si que é a questão aqui, mas sim o encontro.
Belmonte encontra a vida aqui para então mostrar o encontro entre vidas, entre
seres, corpos, lábios, palavras e sonhos. Opção sábia, a de Belmonte, em procurar
a imagem da vida num momento histórico tão conturbado que impede de sabermos ao
certo o que é e onde está “A Imagem”. O caminho do encontro parece passar por
Se Nada Mais Der Certo. Outubro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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