Serras
da Desordem, de Andrea Tonacci (Brasil, 2006) por
Leonardo Mecchi
Tristes trópicos O foco em uma experiência
extrema, à parte da civilização, e a crença no documentário não como um instrumento
capaz de captar a “verdade”, mas como construtor de uma nova realidade, poética
e extática, são características que poderiam fazer de Serras da Desordem
um típico exemplar do cinema de Werner Herzog. Poderiam, não fosse uma única e
fundamental diferença: a fé inexorável de Andrea Tonacci na necessidade de comunhão
do homem com a natureza. Onde Herzog vê caos e desordem, Tonacci vê a possibilidade
de uma harmonia reconciliadora com a natureza. Tal olhar
traz para Serras da Desordem (em especial em seu início, com o retrato
idílico da pequena comunidade indígena) um forte parentesco com o cinema de Terrence
Malick. Essa apologia à figura do bom selvagem (herdada possivelmente de seus
anos de experiência com os índios, através de projetos como Conversas no Maranhão
ou A Visão dos Vencidos, série de documentários realizados em toda
a América com apoio da Fundação Guggenheim) dá ao filme um inevitável caráter
saudosista, onde a civilização e seus avanços tecnológicos representam, mais do
que a ordem ou o desenvolvimento, destruição e desarmonia. Essa
dicotomia natureza/civilização fica clara na seqüência de montagem onde, em contraponto
aos longos planos que retratavam o cotidiano dos índios Guajá, impõe-se, em ritmo
alucinante, um encadeamento de imagens representativas do desenvolvimento civilizatório
(e, ao que deixa transparecer o filme, depredatório e profanador) do país. Tal
seqüência se presta também a reclamar à obra um caráter totalizante da história:
Serras da Desordem não trata apenas da experiência extraordinária de Carapirú,
mas sim da história do próprio país, que após ter exterminado sua verdadeira origem
vaga ao acaso em busca de uma inocência e identidade perdidas. Para
além de seu caráter ensaístico, como proposta estética Serras da Desordem
é uma experiência arrebatadora, um verdadeiro OVNI na atual produção cinematográfica
brasileira. Sua mistura singular entre o registro documental e ficcional, a utilização
dos próprios personagens na reencenação de sua história (ecos tardios de Robert
Flaherty?), os planos-seqüência dilatados no registro da vida primitiva, as seqüências
de montagem e sobreposições de imagens, tudo colabora para uma experiência de
imersão nessa registro audiovisual. Trinta e cinco anos após Bang Bang,
Tonacci nos mostra a mesma inquietude e fascínio pela experiência. O cinema brasileiro
precisava mesmo – e agradece. editoria@revistacinetica.com.br
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