ensaios
Uma questão de revelação
por Francis Vogner dos Reis

A cada ano temos alguns poucos grandes filmes, isolados em meio a um mar de redundância onde o formato supera a forma. Onde as questões levantadas parecem mais importantes que os próprios filmes; onde o hype de alguns exemplares do cinema contemporâneo se revelam, na verdade, pouco mais do que uma reciclagem de signos de certo cinema de autor. É justamente esse panorama que ajuda a deixar mais evidente a exceção que é Serras da Desordem: o filme de Andrea Tonacci é um acontecimento, à altura de seu Bang Bang (1970) ou de um A Idade da Terra de Glauber Rocha. É daqueles trabalhos que reconfiguram a percepção e o entendimento do cinema, como uma antena que capta energias secretas do mundo. Não tem vocação para cânone, não cria escola, não se restringe a contemplar com brilho uma linguagem do cinema – se é que ela existe – apesar de haver ali algo de sagrado.

Mas aonde localizamos Serras da Desordem hoje? Ele é só uma bela obra de exceção que paira soberana acima das outras? Seria o último estágio de evolução do cinema? Se enquadra em concepções genéricas do cinema contemporâneo? Ele supera seus predecessores? Existe para constatar a falência de alguns projetos estéticos atuais? Não. Tudo isso também seria mera, e trágica, ilusão. Há algo no filme de Tonacci que faz do cinema coisa indispensável em um mundo que, desde Lumiére, é abarrotado de imagens. Ele tem aquillo que derruba a barreira entre as idades do cinema, entre o clássico e o moderno, entre o industrial e o miúra. Possui o que existe nos filmes “imprescindíveis” e nos filmes “únicos”.

Da descoberta dos imprescindíveis à Revelação dos únicos

Dos “imprescindíveis”: O Homem que Matou o Facínora, de John Ford (ao lado); Carta a uma Desconhecida, de Max Ophüls; Almas Perversas, de Fritz Lang; e A Grande Ilusão, de Jean Renoir são alguns deles. São manifestos que questionam o mundo, porque escolhem olhá-lo frontalmente como reflexo, mas não se furtando a perceber que algo lhes escapa. O que existiria “por trás da porta cerrada?”, pergunta Fritz Lang; “como a História se constrói”, provoca John Ford; assim como Ophüls sabe que o real na exuberância é o falso e Renoir acredita que o homem só pode ser olhado a partir do específico, não do geral. Apesar de às vezes serem festejados como cânones, não são conciliados e não têm pudores de assumir a imagem como uma tomada de posição irrevogável diante do mundo, nunca “apesar do mundo”. Não acenavam para futuro da arte, porque os mitos estavam cansados. Em O Desprezo, Godard fez disso tudo um epílogo, um estudo do desejo do cinema em ser maior ou tão grande quanto a vida.

Dos “únicos”: Sem Essa Aranha, de Rogério Sganzerla; Passion, de Jean-Luc Godard; e O Intruso, de Claire Denis. Além desses, existem outros – todos peças particulares, exceções. Esses acreditam na aventura cinematográfica da busca das “imagens inéditas”, que não são o desvelamento de uma verdade escondida, mas o testemunho do nascimento dessas imagens, direto do breu, da escuridão. A imagem não como impressão, não como elemento mensurável, não como fato de linguagem, mas como Revelação; como devir.

Serras da Desordem é dessa estirpe. O que não quer dizer que hoje não existam filmes belos (há alguns), mas o de Tonacci, como já foi dito, é único. Único porque não se contenta em utilizar o já visto, o já ouvido e o já sentido. De trabalhar com códigos reconhecíveis. De responder a enunciados teóricos. De se adequar confortavelmente em categorias. Serras da Desordem tem o que une os “imprescindíveis” aos “únicos”: o reconhecimento de que um filme não é contemplação da realidade, não é simulação da mesma, mas sim um rastro dela, que não a exprime de maneira fidedigna, mas que a violenta – no caso de Serras da Desordem, com barbaridade mesmo. E que de A Grande Ilusão a O Intruso (foto acima) a busca é dar vazão a ela com mais verdade possível, verdade que não é documental nem que exige uma representação, mas que é especificamente ritual, crítica das falsas imagens e, também, crítica da linguagem. Serras da Desordem se insurge contra isso e é a aventura cinematográfica que se exprime, que se experimenta, que se vive. Aqui o cinema já não se opõe mais ao mundo, mas também não legitima o estado das coisas. O transfigura.

Serras da Desordem: em busca da imagem inédita

Para Cecil B. de Mille, em Os Dez Mandamentos, o cinema é a fascinação, que vive a contradição entre o maravilhamento do “ídolo” e o indiscernível da experiência cinematográfica (que também é fascinante): Moisés (Charlton Heston) sobe o Monte Sinai e tem A Revelação a partir de palavras e imagens um tanto indiscerníveis: um arbusto flamejante (a sarça ardente) e as palavras mais misteriosas da História: “Eu Sou aquele que É”. Depois de receber os Dez Mandamentos, desce o Monte e encontra os seus adorando um ídolo (bezerro) de ouro, que seria uma representação, naturalmente limitada. Um falso ídolo. O ídolo como imagem oposta à Revelação. Serras da Desordem é uma subida ao Monte. Não interessa ratificar uma visão de mundo, compreendê-lo por meio de seus problemas, encontrar o “nome das coisas” como algo que encerra sentido.

Quando viu o trabalho do amigo Tonacci, o cineasta Luiz Rosemberg Filho escreveu a este crítico: “é um filme rosselliniano”. De fato. Se levarmos em conta esse enlevo ritual, a história desaparecendo e dando lugar a um tipo de arrebatamento desconhecido. Uma emoção estética? Não se sabe ao certo, só se sabe que, como Rossellini em seus melhores momentos (Stromboli, Viagem à Itália), atinge o inominável, o inclassificável, uma revelação única e inédita. Já dizia José Mojica Marins, outro grande caçador das imagens inéditas em Horror Palace Hotel, de Jairo Ferreira, “gênio que fala o que todo mundo sabe não é gênio”, podemos trocar o termo “gênio” usado pelo Mojica (que era conveniente na sua fala), pelo termo mais simples, sintético e de bom senso que é “cineasta”, não do modo como a entendem as faculdades de cinema, mas como era compreendida por Orson Welles (“o cinema só vale se for experimental”) e Glauber Rocha (“interessa a profecia”). A vocação do cinema brasileiro para a “profecia” já foi compreendida e deturpada em messianismos de variadas espécies, sendo o mais crônico o caso Glauber Rocha, que não nos estenderemos aqui, mas que discuti recentemente em texto para a Paisà.

Em entrevista à Contracampo, Andrea Tonacci insiste nas palavras “descoberta” e “revelação” para falar de sua relação com o cinema. Descreve seu processo a partir do não-conhecimento: “cada filme é de novo, é de novo, é do zero, eu não sei nada, entendeu. Cada história, toda vez, é um reencontrar – claro que no caminho do fazer você reencontra coisas que você conhece, mas confesso que, se eu encontro alguma coisa que eu conheço e vejo que me aproximo, eu fujo. Porque já conheço aquilo (...) Essa possibilidade de encontrar algo que é uma revelação é o que me motiva, digamos”.

O não-conhecimento como grau zero da aventura cinematográfica, da busca da imagem inédita. Inédito não como “imagem nunca vista”, mas como abertura de novas portas da percepção, como reconfiguração da relação com a imagem, sobretudo, partindo daquela imagem da qual já se gerou tantos significados e que parece esgotada, como é o caso da problemática indígena (aqui, a história do índio Carapirú, na qual se vincula toda uma problemática histórica que ecoa em sua própria trajetória pessoal – massacre, dispersão, choque de culturas, desterritorialidade, descaracterização cultural, etc).

Isso tudo está no filme, só que o diretor não pretendeu simplesmente fazer um relato, ou quitar uma dívida histórica através da denúncia. Tonacci não tem uma postura programática, mas também não tem a ingenuidade de pensar que uma escolha (de uma imagem, um personagem, um tema) não consista em transparecer seus significantes. Só que ao invés de obedecer a eles, o cineasta os usa como base. Ao mesmo tempo em que Serras da Desordem pode ser visto a partir das considerações mais comuns de significação como ficção-realidade, homem-natureza, experiência autêntica-experiência simulada, apreensão-ocultamento e classificações ambíguas como falso documentário e docudrama, lê-lo a partir dessas distinções intelectuais é um risco (que se deve correr às vezes, porque nisso pode-se cintilar, algo de sua força). Porque em sua própria natureza ele não se opõe, nem afirma essas coisas, não julga o que é belo ou feio, apesar de possuir seu próprio gosto. Serras da Desordem nos desafia a ter o que dizer. Colocá-lo dentro de determinados limites, é correr o risco de perdê-lo.

No processo de escrever um roteiro e imaginar o filme, às vezes me vêem imagens que eu já vi e eu tendo a eliminá-las. É um processo de me sentir livre, não existe mais aquilo de “eu gosto disso e vou por no filme”. Não sei se é a idade, mas você vai se desapegando de tudo isso e vai confiando mais no seu próprio olhar, não precisa mais dessa mala. Vai fazendo, o caminho é esse.”
Andrea Tonacci, em entrevista ao Cinequanon

Tonnaci recusa-se a tornar seu filme subserviente ao desejo de “marca”, pois existe o perigo de falsificar sua relação com o que filma e essa é justamente a preocupação de Serras da Desordem: a de estabelecer o que é essencial para a expressão mais original do mundo, que seria também o descobrimento da experiência como processo que acarreta uma revelação. Como já disse Eric Rohmer, “o essencial no cinema não é questão de linguagem, mas de ontologia”. Tudo isso faz da história do índio Carapirú a da tentativa de continuidade entre a unidade original e a multiplicidade do mundo. É nesse esforço que acompanhamos o protagonista, de seu cotidiano, na floresta, sua fuga, sua trajetória ao encontro com o filho e a reintegração aos seus.

Só que antes de ser uma narrativa, essa saga é uma proposta. O aspecto ritual no que tange Carapirú e Andrea Tonacci em Serras da Desordem é o de propor uma aventura. A de Carapirú é o reencontro com sua trajetória pessoal; a de Tonacci de identificação, de sinergia. Esse mergulho no desconhecido não é só um ato de subjetividade do diretor em busca de autoconhecimento, mas uma regra processual na tentativa de fazer emergir dessa aventura uma experiência que só exista por meio interação e apreensão de uma experiência. Algo que só existe por meio do cinema. Não é só uma reencenação, mas a possibilidade de reviver uma experiência, de recuperar por meio dela uma memória que não é verbalizada, mas encenada, uma performance prescrita pelo cineasta, como nas cenas do reencontro de Carapirú e seus anfitriões baianos ou o a agressão das crianças com os macacos mortos.

O que faz disso um ritual é esse esforço de reencenação de uma trajetória imbuída de sentido e a possibilidade de testemunhar a invasão súbita de algo novo, senão misterioso. É ai que o filme de Tonacci assombra. Assim como Jean Rouch e John Cassavetes, existe certo controle, uma preparação pra chegada (um ritual, como já dito) de uma força que toma o filme em forma de imagens deflagradoras. Não algo profundo e abstrato como a experiência religiosa, mas coisa epidérmica, manifestação concreta da radical revelação que nos propõe Serras da Desordem.

Maio de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta