história(s) do cinema brasileiro
O sexo-neurose do início dos anos 80
por Cleber Eduardo

Dia desses começo a ver no Canal Brasil, já pela metade, A Menina e O Estuprador – estréia como diretor de Conrado Sanchez, diretor da fase terminal da Boca do Lixo. Produção de Antonio Galante, com conceituação de trilha sonora de Jairo Ferreira (um dos aspectos mais potentes do filme), é resultado de um daqueles empreendimentos na raça e no improviso da Boca, com uma equipe composta quase só de novatos, do próprio diretor ao continuista Eduardo Aguilar. No elenco, Vanessa Alves e Zózimo Bulbul.

Vi apenas alguns minutos, muitos deles resolvidos na mão e nos pés (travellings), com dados tardios de uma modernidade selvagem, ao mesmo tempo primitiva e consciente de suas opções, empregada em seu fluxo torto para lidar com efeitos de um trauma sexual de uma jovem. É o mesmo universo dramático-psicológico de Mulher Objeto, de Silvio de Abreu, mas sem o apelo erótico daquele – com uma encenação das situações sexuais tão pouco verossímil que, a certa altura, surge a dúvida se aquilo é acidente gerado pela falta de rigor e experiência, ou se há um conceito ali para não nos iludirmos com as imagens e vermos a encenação. Com Jairo Ferreira ali nas cercanias, tudo é bastante possível.

É interessante notar a sintonia entre o filme e seu entorno histórico-cinematográfico, sem deixar de levar em conta seu sistema de produção específico (o da Boca do Lixo). O filme é de 1982. Só para colocarmos a percepção em perspectiva é o mesmo momento de Amor Estranho Amor, de Khoury; Ao Sul do Meu Corpo, de Saraceni; Pra Frente Brasil, de Roberto Farias; Tabu, de Julio Bressane; Noites Paraguaias, de Aloysio Raulino; Luz Del Fuego, de David Neves, e Das Tripas Coração, de Ana Carolina – esses os principais trabalhos "sérios" daquele ano. A maior parte dos 82 filmes produzidos, porém, tem títulos como Karina, Objeto do Prazer, Nicolli, A Paranóica do Sexo e A Noite das Taras 2. E essa é a turma de A Menina e O Estuprador.

Há em A Menina e o Estuprador um estado de perturbação sexual, que, se não é novidade no cinema desde nunca, explode no cinema brasileiro nos 70-80, não mais como matéria dramática somente de determinados diretores muito particulares (Khoury, Carlos Hugo Christensen), mas como um dado da cultura audiovisual em maior escala – em parte porque as crises sexuais eram chamariz de venda de ingressos, em parte porque pareciam mesmo estar na pauta de pessoal de alguns realizadores. Basta destacarmos que, além dos filmes daquele ano de Khoury, Neves e Ana Carolina, todos engendrados em torno do sexo e do corpo sexualizado, havia entre as produções do ano anterior as obras de Jabor (Eu Te Amo), outra de Khoury (Eros), dois derivados de Nelson Rodrigues (Engraçadinha, de Haroldo Marinho Barbosa; e Bonitinha Mas Ordinária, de Braz Chediak), além de um estouro do segmento sexualizado (Coisas Eróticas, bola dentro – sem trocadilho – do produtor Raffaelle Rossi).

Em A Menina e O Estuprador, há essa soma de sexo para consumo e sexo como questão dramática, tendo em vista que, antes de ser uma sucessão de fragmentos eróticos, a narrativa concentra-se no trauma, no impedimento da realização sexual – com as imagens de corpos em contato sendo tratadas como representação, não como experiência. É o tipíco filme de seu momento histórico cinematográfico, para o qual o sexo passa a ser mais gerador de neuroses que do prazer do encontro entre dois corpos e duas sensibilidades. Ali os corpos se chocam, mas não se encontram.

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta