ensaios
Duas versões de Shadows
por Jonas Mekas, em tradução de Daniel Caetano

Publicado em 27 de Janeiro de 1960

Pode parecer a alguns que já se disse o bastante sobre Shadows, de John Cassavetes. Depois de ver o filme na sua versão original de novo na terça-feira passada, no Film Center, e depois de comparar a empolgação da plateia com a perplexidade no Cinema 16, eu realmente senti que o verdadeiro caso de Shadows está apenas começando.

Eu não tenho mais nenhuma dúvida de que, enquanto a segunda versão de Shadows é apenas mais um filme de Hollywood – mesmo que tenha momentos inspirados -, a primeira versão é o longa metragem americano mais inovador nos últimos dez anos, no mínimo. Corretamente entendido e apresentado do jeito certo, ele poderia influenciar e mudar o tom, os assuntos e o estilo de todo o cinema independente americano. E já está começando a fazer isso.

O monte de gente que estava pressionando para conseguir entrar no Film Center (Pull My Daisy estava sendo apresentado na mesma sessão) serviu para ilustrar bem demais a visão curta dos distribuidores de filmes de Nova York, que continuam escondidos como cegos. Shadows ainda não tem distribuidor. Distribuidores não têm imaginação, nem coragem, nem visão, nem olhos para o novo.

Mais uma vez, eu ressalto que estou falando da primeira versão de Shadows. Eu quero ter certeza de que ninguém vai entender errado. Eu fui posto numa situação do tipo que um crítico de filmes só passa uma vez na vida (espero). Eu enalteci e defendi Shadows desde o princípio (vejam a carta de Cassavetes no Village Voice de 16 de dezembro de 1959 e a carta de Bem Carruther de 30 de dezembro de 1959), escrevendo sobre o filme, empurrando todo mundo para ir vê-lo, fazendo inimigos por causa dele (inclusive o próprio diretor do filme) – e aqui estou eu, traído ridiculamente por uma versão “melhorada” daquele filme, com o mesmo título, mas com metragem diferente, montagem diferente, enredo, atitude, personagens, estilo, tudo: um filme comercial ruim, com tudo aquilo que eu elogiei completamente destruído. Aí todo mundo pergunta: afinal, sobre o que ele estava falando? Será que ele é cego ou coisa parecida? Por isso eu repito e repito: é sobre a primeira versão que eu estava e continuo falando (uma maneira de identificar e decidir entre ver ou sair fora: a segunda versão começa com uma sessão de rock’n’roll).

Eu não tenho espaço para fazer uma análise detalhada e comparativa das duas versões. Basta dizer que a diferença é radical. O primeiro Shadows poderia ser considerado o pólo oposto de Cidadão Kane; o filme faz um forte esforço para pegar (e reter) a vida do mesmo modo que Cidadão Kane fez um esforço para criar a arte a partir da destruição da vida. Qual dos dois objetivos é mais importante, eu não sei. Os dois são muito difíceis de alcançar. De todo modo, Shadows rompe com o cinema de estúdios oficial , com rostos maquiados, roteiros decorados e continuidade de enredos. Mesmo a sua inexperiência com os trabalhos de montagem, som e câmera se tornam parte do seu estilo, a dureza que só a vida (e as pinturas de Alfred Leslie) tem. Ele não prova nada, nem sequer pretende dizer alguma coisa, mas na verdade ele diz mais do que dezenas ou centenas de outros filmes americanos recentes. Os tons e ritmos de uma nova América são captados em Shadows com mais vida do que o próprio Cassavetes imagina. (Pull my Daisy também faz isso, talvez ainda melhor, mas ele ficou pronto um ano depois de Shadows.) Talvez agora ele esteja próximo demais da obra, mas acredito que ele vai mudar de ideia. E quanto mais cedo a segunda versão for tirada de circulação, tanto melhor. Enquanto isso, essa versão bastarda é mandada para festivais e é apresentada oficialmente, enquanto o verdadeiro filme, o primeiro Shadows, é tratado como um filho rejeitado. Isso é o bastante para me deixar doente e de boca fechada.

Agosto de 2011

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