The
Rolling Stones - Shine a Light (Shine a Light), de
Martin Scorsese (EUA, 2008) por Eduardo Valente
Only
rock'n'roll
Os Rolling Stones já foram chamados de “a
maior banda de rock do mundo”, estão juntos há 46 anos e já tiveram mais de 10
filmes realizados sobre/a partir deles ao longo de sua história – aí incluídos
dois filmes seminais em sentidos bem distintos, como são o Gimme Shelter
dos irmãos Maysles e o One Plus One/Sympathy for the Devil, de Godard.
Eles são um fenômeno mundial da era da mídia, sobre quem tudo já foi dito e repetido
muitas e muitas vezes. Não há uma outra banda de rock que possa ser tão justamente
chamada de “monumento”, hoje ou jamais. É impossível, portanto, fazer um filme
sobre este grupo em 2008 sem dar conta desse manancial prévio – e Martin Scorsese
não se aproxima desta missão inocentemente. Pelo contrário, incorpora a dimensão
midiática dos Stones nos materiais de época que usa, mostrando sempre a banda
sob os holofotes e o escrutínio da imprensa. Não faz sentido querer “revelar os
Stones desconhecidos”, porque os Stones só existem enquanto produto daquele meio.
Desta forma, só há dois filmes que podem ser feitos com
algum frescor sobre os Rolling Stones hoje: primeiro, um filme sobre esta banda
que desafiou todos os prognósticos (inclusive os seus próprios, como vemos no
filme) e regras do seu métier e está à beira de completar 50 anos de carreira.
Para isso, Scorsese vai buscar uma série de imagens que tratem, quase sempre,
do constante desafio da banda ao tempo, à duração, como se buscasse uma explicação
para este fenômeno. O segundo filme que há aqui serve então como resposta a este
primeiro, ao se focar na energia que a banda consegue gerar quando sobe num palco
para tocar, e que é o verdadeiro motivo e motor de sua longevidade – tanto no
que se refere ao público quanto, principalmente, no que se refere a eles mesmos.
O grande golpe de Scorsese, então, é perceber justamente que estes dois filmes
fortes são, no fundo, um só, e se materializam de uma mesma maneira: os Rolling
Stones, no palco, tocando, renovando sua energia de forma quase vampiresca e ao
mesmo tempo “vestindo” seus 45 anos de estrada nos rostos enrugados. É
sabido que Mick Jagger e os Rolling Stones sugeriram a Scorsese que filmasse sua
performance no show que foi realizado na Praia de Copacabana, para mais de um
milhão de pessoas. No entanto, o diretor preferiu registrar os Stones no pequenino
Beacon Theater, em Nova York – e não é difícil entender o porquê, afinal seriam
dois filmes completamente diferentes. Em Copacabana, Scorsese teria que fazer
um filme muito mais sobre o lugar em si, sobre a presença daquele público massivo
e o potencial de mover multidões da banda. No entanto, este não é o filme que
interessa fazer sobre os Rolling Stones hoje, entre outros motivos porque não
chega a diferenciar enormemente eles de nenhum outro fenômeno pop (embora a dimensão
deste fenômeno hoje não esteja fora do filme, através da presença de Bill Clinton
apresentando o show, além da própria aura das quatro míticas figuras). Já
no Beacon Theater, com suas dimensões pequenas que lembram um teatro antigo e
aconchegante (além de visualmente belíssimo), Scorsese pode estar próximo e sob
controle para melhor filmar aquilo que é seu foco principal: os Stones, tocando
(tanto que, uma vez começado o concerto, só teremos um plano exclusivamente
da platéia depois de quase uma hora de show). E controle é uma palavra
importante para o diretor, como vemos no hilário pequeno prólogo do filme, em
que Scorsese (divertindo-se como “ator de si mesmo”) tenta adequar as necessidades
de preparação e rigor da realização cinematográfica ao espírito um pouco mais
caótico do rock’n’roll (embora valha notar que as situações são claramente
encenadas, como o recebimento do set list em cima da hora do começo, criando
um charme a mais que nos esconde alguns detalhes como o de que foram de fato duas
noites de show para a filmagem).
As
dimensões do Beacon se revelam perfeitas para que Scorsese, com a ajuda de Robert
Richardson na fotografia (num trabalho de luz que leva a pelo menos duas piadas
com o fato de que Mick Jagger poderia “pegar fogo” de repente, tal a potência
dos refletores) posicione uma série de câmeras e consiga, de fato, cercar os Stones.
O resultado deste “arsenal” de câmeras (que é quase coadjuvante do filme, por
ser impossível de não aparecer em laterais e fundos de quadro) impressiona menos
por um gigantismo das imagens, como seria o caso num show em Copacabana, do que
pela possibilidade de cada um dos câmeras ater-se aos mínimos detalhes que se
desenrolam à sua frente, sabendo que outros ângulos estarão cobertos. Dessa maneira
é que Scorsese/Richardson podem dispensar atenção a cada troca de olhares
ou sorrisos no palco, a cada gesto diferenciado, que torna um show um evento único
e impossível de repetir, mesmo após 46 anos – e nisso são ajudados por uma edição
que sabe respeitar o tempo longuíssimo em alguns planos onde o drama está na duração
de uma nota, de um canto, de uma emoção; mas que também vai buscar o curto plano
de insert onde algo de único acontece. E
aí entra em cena a mágica de uma banda que, para além de ter um núcleo que está
junto há mais de quatro décadas, conta com a “sorte” de juntar ao vivo dois dos
maiores performers da história do rock. De um lado, Mick Jagger em sua
energia assombrosa, sua capacidade de não ficar quieto por um segundo no palco,
remexendo o corpo enquanto corre de um lado para o outro, eletrizando cada membro
da platéia, mas também da banda de apoio (há uma preciosa dinâmica entre Jagger
e a backing vocal); do outro, Keith Richards, o rei do cool, capaz
de ter uma expressão, um sorriso, um gesto teatral para cada acorde. Jagger e
Richards não são apenas brilhantes no que fazem, mas em como fazem – e se encontram
escudados ainda pela discrição quase folclórica de Charlie Watts na bateria e
a presença de Ron Wood na outra guitarra, sutil o suficiente para não sobrepor-se
a Richards, mas com personalidade para também não sumir por detrás deste. A sensação
de Shine a Light, muitas vezes, é a de que estamos no palco, ao lado destes
Stones, não simplesmente assistindo a um show deles. Para
esta sensação, é claro que ajuda muito o estupendo trabalho de mixagem sonora,
que cria uma parede de sons impressionante no seu cuidado com a espacialidade
da sala de cinema. Cada plano do filme é trabalhado diferenciadamente, e os passeios
pelas guitarras, vocais ou metais do show têm um efeito quase hipnótico – efeito
este que é extremamente adequado ao rock incrivelmente básico dos Stones, um rock
primário no que o termo tem de melhor, que recusa a noção de virtuoses pela do
punch (ou, nas palavras de Keith Richards: “eu e Ron somos guitarristas
péssimos, mas juntos somos melhores que 10 outros”). O som dos Stones não é um
som de inovações e crossovers, e sim um som que busca nas raízes do rock
(rhythm’n’blues) e nos seus primos mais próximos (o country, o blues,
o jazz) as origens da sua força. Talvez seja por isso que os Stones soam
hoje atuais, e o seu estilo parece tão impassível à passagem do tempo quanto eles
mesmos no palco. Numa era dominada pelos incontáveis DVDs
de shows (de rock ou outros estilos), parece não haver muito sentido em fazer
um filme para cinema com uma banda tocando ao vivo – a não ser que seja para mostrar
uma inovação tecnológica, como o recém-lançado filme em 3D do U2. Pois Martin
Scorsese consegue fazer de Shine a Light um autêntico filme de cinema,
ao achar na energia sonora e na presença mitológica e dramática de palco dos Stones
o material que sempre moveu o cinema: o maravilhamento da entrega a um universo
de sons e imagens. Abril de 2008
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