in loco - cobertura dos festivais
Shirin (idem), de Abbas Kiarostami (Irã, 2008) por
Paulo Santos Lima
A
imagem anterior à tela
O olhar sai das órbitas
e segue seguro e todo vetor até a tela, onde encontra, como sempre, um material
projetado. Em Shirin, essa recorrente travessia que acontece sempre quando
estamos numa sala de cinema chega a um lugar bastante inacreditável: em vez do
filme, uma outra platéia assistindo a um longa que recria A História de Khosrow
e Shirin, clássico da literatura persa do século 12. Uma platéia que, longe
de ser um duplo idêntico ou semelhante a nós, porta-se como relativa a nós, idêntica
na experiência e não na imagem. É Abbas Kiarostami prosseguindo com seu cinema
de deslocamentos e transferências, subvertendo a ordem comum dos canais que habitam
a experiência da audiência cinematográfica para trazer à tela (ou entre tela e
nós) alguns assuntos bastante cruciais e contemporâneos. Passando
alguns dos outros filmes de Kiarostami, o deslocamento temporal (O Vento nos
Levará), o deslocamento dentro do plano (Five) ou dentro do espaço
diegético (Gosto de Cereja) ou mesmo o deslocamento camuflado pelo dispositivo
(Ten), todos eles parecem modestos perto da grande subversão de Shirin,
no qual o filme é transposto para o meio da sala escura, entre duas platéias.
Uma imagem invisível, quase metafísica e cujo corpo é apenas áudio. Tal disposição
dá outra participação a que estiver assistindo a Shirin, bem distinta daquela
que o elenco está encenando dentro do filme, atuando como se de fato assistisse
à tal história de amor persa. Somos, assim, deslocados a um papel de sujeitos
documentais – afinal, não estamos a atuar, mas apenas a assistir àquelas mulheres
(e alguns homens, no fundo penumbrado) emocionando-se com a história contada dentro
da diegese. Elas nos olham. Somos observados. E também olhamo-nas, pois o que
há de índice são esses rostos e será através do som do filme, diálogos etc, e
suas contrações faciais, que teremos acesso ao que se passa na diegese. A
condição feminina, tema presente em Ten, aqui pareceria um assunto extradiegético
se não fosse a dor que a desventura amorosa e doída da princesa armênia Shirin
passa ao longo da vida, sacrificando-se ao final da jornada sem ter o amor do
rei persa, Khosrow. O conto fala de quando, a partir disso, o mundo ficou mais
amargo. Kiarostami colhe algo feito oito séculos atrás para colocá-lo literalmente
no meio da sala escura, naquilo que é talvez o acontecimento mais contemporâneo
que poderia se ter num cinema, numa imagem que, mesmo invisível, precipita-se
antes mesmo de nossos olhos alcançarem a tela. O jogo de cena, aparentemente elementar,
é bastante mais complexo na experiência. Vemos, como na imagem ao lado, sempre
um rosto feminino em primeiro plano e outro feminino ou até masculino atrás. Uma
frontalidade magnífica que traz o óbvio: a mulher é o centro da cena. A moldura
facial que se faz de panô é quem indexa o plano como algo capturado dentro de
uma sala de cinema. O rosto da frente recebe uma luz mais uniforme e clara, e
os de trás sofrem a alternância da luz que está sendo projetada no tal filme que
eles assistem. Há, assim, uma luz intradiegética (a que ilumina os rostos traseiros)
e a extradiegética que seria da iluminação do set para que Abbas pudesse filmar
a cena. Duas
luzes: uma referente aos personagens e outra referente às atrizes. Uma hierarquia,
dentro do classicismo cinematográfico, da mulher sobre o homem (afinal, todas
surgirão em primeiro plano em algum momento de Shirin, ao contrário dos
dois ou três machos que aparecem atrás), mas sobretudo do índice sobre o enredo.
Há um discurso contado pelas faces, torteios de boca, lágrimas descendo ao queixo,
numa performance intensa que salta aos olhos no momento de uma batalha cruel,
ou quando Shirin cai em desespero diante da impossibilidade de consumar seu amor.
Assim sendo, no jogo no qual Kiarostami tumultua a ordem espacial dos elementos,
envolvendo-nos como canais dentro da experiência criada pelo seu filme, somos
o próprio reflexo real daquela encenação over. Somos o índice real e contemporâneo
de um drama não menos presente no mundo de hoje sobre a condição da mulher em
países como o Irã. Uma condição que apresenta resistência, algo muitíssimo bem
avistado em Tem. Mas, como sempre, Kiarostami aniquila o reles “discurso
político” para transportá-lo para o que diz respeito à cena, ao dispositivo ou
a qualquer coisa que esteja fundida à imagem – e não ao blablablá verbal das fitas
sobre política, os Ken Loach e tais. A política se faz no jogo de cena, e de um
modo puro e elementar, com planos fixos como Dreyer os filmaria décadas atrás.
A política que coloca o espectador em outro lugar no já manjado tabuleiro das
salas de cinema.
E, disso, parece claro que Shirin é, certamente,
a mais sideral das experiências 3D da história do cinema. De um 3D metafísico,
de uma imagem fantasma e invisível que toma toda a pradaria entre olhos e tela
e, disso, nos inebriando com a falsa idéia de que somos idênticos àqueles personagens
que assistem ao filme dentro do filme. Seria, também, a primeira experiência de
um filme vivo, que assume o nosso local para nos observar. Como num espelho que
raqueteia a imagem ad eternum. É Kiarostami, cineasta moderno nos anos
2000, em sua prestidigitação, recuperando a suspensão das platéias do primeiro
cinema. Novembro de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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