in loco - cobertura dos festivais
Turistas (Sightseers),
de Ben Wheatley (Reino Unido, 2012)
por Filipe Furtado

O mal-estar como instituição

Ben Wheatley tem um prazer particular em filmar o interior inglês. A paisagem descampada do norte inglês de Turistas ganha uma vida constantemente perturbadora. Há um desarranjo constante nestas imagens, a sensação sempre presente de que os vários pontos turísticos do tour que Wheatley nos proporciona já testemunharam horrores muito piores do qualquer coisa que o cineasta possa imaginar, e vão se ligar ali a testemunhar muitos outros depois que a câmera desligar.

Assim como Kill List, o excelente filme de horror que o diretor realizou ano passado, Turistas progride de um naturalismo muito inglês – suas primeiras cenas da protagonista se preparando para viajar enquanto a mãe dominadora reclama sem parar poderiam facilmente vir de um filme de Mike Leigh – até um estado de violência constante que parece surgir naturalmente. Seus rompantes de violência são tão banais quanto suas sequências domesticas. Wheatley busca localizar este mal-estar constante nos lugares e nos códigos sociais que seus personagens respeitam às vezes sem perceber, mas o faz sem o editorial e a provocação barata de muitos dos seus pares. Se há algo terrível na Inglaterra de Turistas é que o mal dela é um dado que o filme reconhece como existindo antes dele, só um fato a mais dentro da sua construção, com o qual simplesmente se deve conviver.

Wheatley gosta de trabalhar a partir de elementos muito tradicionais da ficção cinematográfica inglesa e Turistas pertence a um sub gênero – a comédia de humor de serial killer – que não poderia ser mais local. De As Oito Vítimas a Teatro de Sangue, a ideia do sociopata como fonte de humor não poderia ser mais inglesa. Aqui temos um casal de trinta e poucos anos saindo de férias de uma semana por alguns pontos turísticos peculiares, invariavelmente ligados à história mais obscura do país, e rapidamente deixando para trás uma série de assassinatos violentos - já que ele tem uma propensão natural a punir todos aqueles que julga desrespeitá-lo de uma maneira ou outra (o sujeito que se recusa a recolher a embalagem que jogou ao chão; o casal classe média alta que se incomoda com a sua presença, etc).

Turistas
progride ao mesmo tempo mais engraçado e assustador, justamente porque Wheatley filma tudo com a mesma convicção, não importa o quão grotesca e absurda a ação se torne. As sequências de assassinato, em particular, se beneficiam muito do gosto do cineasta pelo naturalismo, cada vez mais integrados que são à existência dos personagens, para, na altura do clímax, eles serem filmados como o evento mais cotidiano possível - o que o torna ao mesmo tempo mais engraçado e assustador (alguns críticos inclusive confundiram o tom do filme e reclamaram de que ele era um filme de horror fracassado por conta das suas piadas, sem notar que se tratava de uma comédia). Ao contrário de Kill List e sua cada vez maior intensidade, Turistas é um filme casual, realizado com um tom ligeiro que lhe cabe perfeitamente. É um filme cuidadosamente preparado para parecer uma obra de intervalo entre filmes maiores, e quem não viu os trabalhos anteriores do cineasta pode, pela primeira metade do filme, associá-lo com facilidade a Edgar Wright, que serviu como um dos seus produtores. Há uma reversão muito calculada aqui que serve como um oposto complementar do primeiro sucesso do cineasta. Wheatley tem grande facilidade para filmar embaraço e falsa cortesia e ainda maior em alternar perspectivas e se mover entre tons radicalmente diferentes, elementos todos que se combinam para que o filme siga sempre um objeto inclassificável, sem se curvar a nenhuma das facilidades que o material poderia permitir.

Se Wheatley filma os crimes na mesma chave que as discussões do casal ou boa parte das interações mãe/filha, é porque no universo de Turistas eles brotam de mesmo lugar. A certa altura, o namorado se irrita porque Tina, na sua disposição de abraçar a lógica homicida dele, o tirou da sua rotina e os levou a crimes sem o cuidado e escolha cuidadosa de vitimas que ele acredita ter. “Você não age com método”, ele reclama. Na Inglaterra de Ben Wheatley até o assassinato em série é uma atividade institucionalizada; mesmo o serial killer age sob crença de que a sua atividade tem sentido e direção claros. Muito da graça de Turistas vem de expor o absurdo desta ideia. Podemos voltar ao campo inglês e a história de destruição dissimulada que os planos de Turistas sugerem; o mal-estar que Wheatley tão bem captura é só mais uma das muitas instituições inglesas, e que o filme o localize com bom humor e leveza só o torna ainda mais especial.

Outubro de 2012

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