in loco - cobertura dos festivais
Síndromes e um Século
(Syndromes and a Century),
de Apichatpong Weerasethakul
(Tailândia/França/Áustria, 2006)
por Eduardo Valente
A música do mundo
Para os que ainda não conhecem o cinema
do tailandês Apichatpong Weerasethakul (ou simplesmente
"Joe", apelido que ele sempre usa), talvez Síndromes
e um Século seja uma experiência deflagradora - como
antes já haviam sido Eternamente Sua (no Brasil
somente exibido no Festival do Rio, e na TV a cabo) e Mal dos
Trópicos. No entanto, convém passar por cima
do inevitável choque estético, porque o cinema de
Joe, ao contrário do de um Pedro Costa, por exemplo, não
pede tanto uma constante reavaliação de olhar do
espectador a partir das suas propostas estéticas, e sim
uma entrega quase absoluta à sua proposição
dramatúrgica, onde a conexão que existe entre os
planos é tão importante quanto o universo descortinado
por cada um destes - e onde, do ritmo autenticamente musical da
seqüência e acumulação das seqüências
atinge-se um efeito semelhante ao do recitar de um mantra, que
vai lenta, mas inexoravelmente nos puxando para dentro de um outro
estado de absorção do mundo.
É curioso que falemos em mantra justamente sobre este filme,
onde a presença dos monges budistas é uma constante.
Só que, mais curiosamente ainda, tudo que eles não
fazem no filme é uma cerimônia religiosa, porque,
no cinema de Joe, não se trata nunca de sentidos óbvios.
Tanto assim que, de saída, o filme instaura o seu tom (no
sentido mesmo do andamento rítmico), não com uma
oração, mas com uma entrevista de trabalho! Só
que o enquadramento fixo no rosto do personagem entrevistado,
e a sucessão ritmada de perguntas e respostas, que vão
tomando um rumo quase metafísico ("gosta mais de círculos,
quadrados ou triângulos?", "círculos"...),
vai nos colocando desde esta entrada no filme numa percepção
diferenciada do tempo, num estado de harmonia com o filme. Na
seqüência, ao final da entrevista, a câmera faz
um primeiro movimento de travelling e reenquadramento (constantes
no cinema de Joe), e tira o hospital de nossa vista, trocando-o
pela paisagem da floresta que se deixa ver pela janela. A conversa
continua em off, com o quadro agora fixo sobre o verde,
e de novo o efeito é o da hipnose - tanto que alguns talvez
nem percebam que, ao final da conversa, os atores começam
a discutir metalinguisticamente sobre a repetição
dos takes da cena. Este movimento de câmera instaura o clima
do primeiro movimento do filme, o que se passa no hospital cercado
pela natureza. Nele, como nos dois filmes anteriores do cineasta,
vemos que ninguém filma o verde como ele. Sua presença
é constante, e os quadros parecem ser invadidos pela natureza
o tempo todo - seja pelo som fora de quadro, seja mesmo pela presença
visual e temática.
Instaurado o ambiente, Joe parte para suas histórias -
que, como quem conhece o seu cinema já está acostumado
a estas alturas, vão se superpondo em camadas consecutivas
que não precisam de alguma lógica interna de estruturação
clássica. O que cabe aqui é uma entrega à
interação entre os personagens, entre eles e o ambiente,
e principalmente entre a câmera e estes. As histórias
se superpõem sempre no sentido do contato entre alguns
seres humanos, dos mistérios que se estabelecem entre eles
em suas interações. Joe filma os homens e mulheres
no mundo como mais ninguém hoje: há um sentido de
maravilhamento constante em cada conversa, em cada evento. Este
maravilhamento se dá nos menores detalhes: seja na composição
interna dos quadros e na sua duração (a entrevista
da médica com o monge ou o "concerto-consulta");
seja pela construção da sua montagem (notar, em
especial, a seqüência que leva o filme de um quarto
vazio durante o dia, em que começa a tocar uma música
ao fundo, para a apresentação musical noturna);
seja pelo uso da construção imaginária pelo
espectador daquilo que não se dá a ver (a floresta
que antes era um lago, como diz uma personagem; ou as fotos de
orquídeas que brilham no escuro que um personagem mostra
a outros, mas que nós não vemos); seja mesmo pelas
palavras numa conversa (em especial a conversa do dentista com
o monge, que fecha a primeira parte do filme).
Neste momento, quando o espectador começa a se sentir familiarizado
com a narrativa e sua forma, como de hábito Joe, recontextualiza
toda a sua história - com um efeito estético quase
tão devastador aqui quanto nos dois filmes anteriores.
A volta à cena inicial, com os mesmos dois atores, só
que num ambiente completamente diferente, nos tira o chão.
O espectador pode optar pelo tatear racional de sentidos de percepção
(construção espelhada, natureza versus vida urbana),
só que estes sentidos nunca serão definitivos. Não
estamos aqui em terreno semelhantes às narrativas duplas
de um David Lynch, por exemplo (Estrada Perdida, Cidade
dos Sonhos), onde o sentido onírico é construído
a partir de um forte teor de racionalidade. Em Joe, o onírico
e a maravilha do mundo existem por si mesmos, e sua relação
é muito mais pelo lado da filosofia oriental: pensar em
temas como a reencarnação faria sentido (embora
não explicasse nada), ou pensar ainda na questão
das possibilidades de vidas distintas, de universos paralelos.
Se nossas vidas talvez pudessem ser outras vidas, Joe parece nos
propor que cada filme poderia ser também um outro filme;
que cada plano poderia ser um outro plano; cada objeto pode ser
um outro objeto (ver a garrafa que emerge magicamente de uma prótese).
No entanto, nos parece mais enriquecedor do que buscar estas linhas
de leitura, permitir a entrega aos seus efeitos. Porque podemos
até conceituar muito sobre a oposição estética
entre o verde e o branco das duas partes do filme; sobre a construção
de planos em movimento como o sublime plano do "buraco negro"
na parte final do filme (cujo duplo com o eclipse solar da primeira
parte é óbvio); sobre o personagem que joga tênis
consigo mesmo (e que a mágica do cinema permite que, num
movimento de quadro, ele esteja nos dois lados de um mesmo quadro).
Mas em Joe não se trata de um empobrecedor cinema "simbólico",
onde cada abstração possui uma leitura óbvia
e direta (naquele suposto "cinema poético" que
Tarkovski já denunciava como falso). Trata-se, sempre do
se maravilhar com o mundo, com a capacidade do cinema captar o
mundo: com um brinquedo que pode ser um disco voador, ou, finalmente,
com o ápice do mundano que é uma aula de aeróbica
em praça pública. Todos, igualmente, encantadores
e encantados. Porque o cinema de Joe se aproxima muito da música
e do seu efeito de sublime (não por acaso a música
é uma presença essencial, inclusive filmada): um
que toma o ouvinte de assalto, mas que é difícil
explicar racionalmente.
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