in loco - cobertura dos festivais

Soi Cowboy (idem), de Thomas Clay
(Inglaterra/Tailândia, 2008)
por Eduardo Valente

Talento procurando alma

Em 2005, Thomas Clay levou seu segundo longa, The Great Ecstasy of Robert Carmichael, para a Semana da Crítica em Cannes, onde causou polêmica (o que, em termos modernos, equivale a dizer que criou um nome para si mesmo no mercado mundial de autores de cinema) devido ao uso extremo de cenas violentas. Soi Cowboy seria, portanto, o passo seguinte numa trajetória agora já planejada e consciente da sua aceitação e lugar dentro do cinema mundial (e, não por acaso, foi exibido na Un Certain Regard do mesmo Festival de Cannes). Por que começar a crítica de um filme com esta explicação biográfico-cronológica? Porque, no mundo do cinema contemporâneo, ela parece tão determinante quanto qualquer outra informação para que olhemos para este novo filme do diretor britânico.

O filme começa em preto e branco, com planos longos e no geral parados (alguns poucos movimentos laterais , em panorâmicas e travelings) no que vai aos poucos se configurando como o estabelecimento de uma rotina de um casal: ele, um inglês de proporções corporais enormes; ela, uma jovem tailandesa diminuta – e grávida. Nesta, que depois se revelará apenas a primeira parte do filme, Clay (que morou mais de dois anos na Tailândia) parece lidar com as pré-concepções sobre um relacionamento humano com repercussões metafóricas e reais sobre uma situação global: a ida de estrangeiros (europeus, principalmente) a regiões do Sudeste Asiático (mas não apenas) em busca de satisfação de seus desejos (sexuais, principalmente, mas não também só , como vemos claramente).

A opção pelo preto e branco e pelos tempos estendidos parece querer buscar uma certa filiação na história do cinema, algo que começa no Antonioni da famosa “trilogia da incomunicabilidade”, mas que certamente passa pelo Jarmusch dos primeiros filmes. Algo que se coloca entre o tédio e a banalidade, entre o desejo por um rigor e elegância visual com toques de um existencialismo cool. Se o filme retira alguma força da presença física do ator Nicolas Bro e alguma graça de momentos dos dois juntos, ao mesmo tempo parece hiper-consciente do terreno que repisa (Clay parece não ter medo dos clichês da solidão a dois, apelando para o Viagra aqui e para a masturbação ao lado da mulher que dorme ali). Se assume quase paródico, inclusive, num plano que envolve uma velha senhora que usa um andador e um longo corredor de hotel.

De repente, após um plano com um longo traveling na quase penumbra de um cemitério, praticamente começa um outro filme, que seguirá o personagem do irmão da menina (que vimos em uma curta cena na primeira parte) na casa da família, no interior da Tailândia. Aqui, tudo se opõe à primeira parte: cores saturadas, câmera na mão balançando em absolutamente todos os planos. É inevitável pensar, agora, em Apichatpong Weerasethakul, não só pelo fato deste momento se passar numa Tailândia com forte presença do verde e da natureza, mas principalmente por esta opção radical de separação do filme em dois momentos que quase não se conectam esteticamente, mas que buscam se complementar em outros sentidos.  A história se desenrolará então rumo a um desfecho que aponta ainda para um outro registro: algo perto do fantasia e do pesadelo de um David Lynch, em que as duas pontas da história se unem de forma bem parecida com Mulholland Drive, estabelecendo uma relação entre o sonho e o pesadelo.

Tudo isso, quando colocado junto, faz de Soi Cowboy um filme tão instigante quanto incomodativo. Instigante porque, de fato, suas sobrecamadas narrativas conseguem construir uma leitura com algum interesse a partir de uma situação inicialmente banal. A junção entre sonho, pesadelo, representação e relações de poder no filme resultam bastante bem trabalhadas para que um material que se prestaria facilmente a um realismo-naturalista banal e denunciativo. No entanto, o filme atinge esta construção quase sempre a partir de uma utilização de repertório cinematográfico que parece misturar o tempo todo a busca da resolução audiovisual para questões narrativas com um certo desejo de impressionar, de buscar o efeito mais fácil, mais “radical” (a câmera na mão hiper-chamativa da segunda parte sendo o mais incômodo dos elementos, pois realmente desnecessário para além de compor uma idéia de “duas metades bem diferentes”) que muitas vezes faz o filme parece incrivelmente distante de tudo que filma.

Daí que voltamos ao parágrafo inicial: Soi Cowboy permite antever o trabalho de um diretor que consegue construir espaços e clima para sua narrativa, mas que talvez esteja ainda muito preocupado com sua assinatura, com sua “importância” no campo do cinema de autor atual. Com isso, tendo em vista como as coisas funcionam hoje, Thomas Clay até pode viver uma vida fácil de aceitação atual, mas sua obra, se seguir por este caminho, dificilmente sobrevive ao teste de qualquer tempo, ao não encontrar uma verdade interna que a torne realmente única.

Setembro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta