O Sol do Meio-Dia, de Eliane
Caffé (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente
O
rio passa, os personagens ficam
Quando começa O Sol
do Meio-Dia estamos grudados no rosto de Luiz Carlos Vasconcelos, que sai
da cadeia. Acompanhamos o personagem em pouquíssimos planos, que na medida em
que se embrenham por um ambiente de beira de floresta, onde ele reside, nos trazem
à lembrança Los Muertos, de Lisandro Alonso, reprisando de alguma
maneira as maiores forças daquele filme: a atenção extrema ao rosto e corpo do
seu ator como depositário da verdade maior da cena, que escapa em muito a nossa
compreensão consciente, mas que atinge um outro nível de relação igualmente forte
e presente. Logo, entretanto, entra em cena o personagem de Chico Diaz, que dividirá
com Vasconcelos a maior parte do tempo de tela de O Sol do Meio-Dia, e
se o curto-circuito entre os registros dos dois atores poderia ser o responsável
pelo grande interesse e diferencial do novo filme de Eliane Caffé, da maneira
como ele é posto em cena ao longo da narrativa ele acaba funcionando mesmo como
o limitador das suas possibilidades de expansão. Isso porque
há uma dualidade clara entre os dois, encarnada na forma de se colocar em cena:
Matuim/Diaz é o bufão, o personagem extrovertido que guarda dentro de sua presença
de mundo patética (encarnada acima de tudo em sua peruca) inevitáveis ecos trágicos;
Artur/Vasconcelos é o personagem introvertido que carrega um trauma do passado,
e cuja violência latente sabemos ser a principal característica na sua forma de
lidar com o mundo. Quando une os destinos dos dois personagens, colocando-os sozinhos
num barco que desce um rio na Amazônia, cujo destino é o menos importante, o filme
acredita que virá da interação entre os dois e da deles com o mundo à sua volta,
a força que o manterá de pé independente de sua trama diminuta. Menos um filme
de roteiro, portanto, do que de colocação dos corpos de seus atores/personagens
no jogo com a paisagem exuberante à beira do abstrato na natureza, e simples ao
ponto do minimalismo nas cidades e rostos humanos.
Esta não é aposta nova
no cinema brasileiro, diga-se, e encontramos aqui ecos desde um Iracema
até o recente A Festa da Menina Morta. A impressão que temos do conjunto
destas tentativas é que o cinema brasileiro, ao chegar neste horizonte distante
que ainda é a Amazônia, não se sente à vontade nunca para apostar por si mesmo
numa fabulação ficcional, e precisa sempre se render aos riscos inerentes deste
corpo a corpo com o espaço pelo que ele é. E se estes riscos davam em resultados
consideravelmente bem sucedidos por caminhos tão distintos nos outros dois filmes
acima citados, no de Eliane Caffé ele acaba esbarrando nos limites de um meio-termo
mal resolvido. Sim, porque na presença em cena de um Paulo Cesar Pereio ou dos
atores principais da Festa havia um abraço tal ao artificialismo destas
intervenções, que o choque entre elas e o seu entorno (tanto paisagem
como pessoas) carregava os filmes de potência pela sua posição ao mesmo tempo
externa e performática em relação a uma verdade que se afirma com muito pouco
– a da floresta, a dos rostos marcados e marcantes do local. No
caso da presença em cena de Diaz e Vasconcelos, o registro é outro, onde embora
não se perca a dimensão da performance, esta é muito menos explosiva e muito mais
a da “atuação profunda”. Tanto Diaz quanto Vasconcelos, mesmo em seus momentos
mais expansivos no caso do primeiro ou performáticos da interioridade, como é
típico do segundo, parecem buscar passar aos seus personagens uma noção de verdade
baseada em conceitos como a psicologização, a qual simplesmente não consegue ultrapassar
uma certa banalidade em cena. Isso é algo que vemos, por exemplo, no contraponto
à violência de Artur que viria por ele ser um artista manual sensível; ou da insistência
de Matuim na externalização da arrogância sempre marcada pela clara impossibilidade
de bancá-la. Todas
estas são características dos personagens que entendemos desde sua primeira entrada
em cena, mas que os atores continuam interpretando como chaves únicas e/ou misteriosas
de atuação, ao ponto de tornarem-se apenas repetitivos e superficiais (no mau
sentido do termo). O resultado desta forma de estar em cena dos personagens que
movem o filme é que nosso interesse por eles não é o suficiente para segurar a
narrativa de pé, algo que se acentua quando o filme insere uma terceira personagem,
e ali sim pretende urdir um jogo ficcional de relações. É difícil acreditar na
verdade destas interações porque já não acreditamos mais na dos personagens e
sua relação com o ambiente, que ainda insiste em cair em certas apelações a manifestações
culturais (os marginais de beira de rio que tocam rabeca lindamente local) e temáticas
sociais (a trama com a prostituta juvenil) como maneira de ampliar um escopo,
quando não precisaria disso. Não que O Sol do Meio-Dia
seja um mau filme, longe disso. Apenas parece por demais escorado em determinadas
soluções no seu roteiro e trabalho com atores (e consequente filmagem destes)
que, ao não radicalizar certas escolhas, termina por soar sempre tépido, nunca
realmente quente com o desejo de nos pegar pela gola da camisa. Assim, terminamos
acompanhando a história destes personagens, que deveriam estar (e nos fazer sentir)
no fio da navalha, com uma placidez e uma distância que não ajuda em nada a que
no final não sintamos um forte desprendimento pelo que vimos. Se o road movie
aqui se torna river movie, ele se atrela demais ao que esperamos desde
o começo como trajetória e arco dos personagens, e se deixa tocar de menos pelo
caminho que leva até lá. A transformação por que passam Matuim e
Artur não parece ao final resultado do trajeto e do mundo encontrado, mas
sim de um desejo anterior e exterior a todos eles. São, no final, o que
sempre se pensou que seriam, e eram desde o começo. Outubro
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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