Sombras da Noite (Dark Shadows),
de Tim Burton (EUA, 2012)
por Pedro Henrique Ferreira
A
fábula do monstro
A imagem contemporânea do monstro sofreu
uma inversão em relação à da arte
do começo do século XX: a maldição
que o assolava perdeu sua negatividade e virou uma espécie
de dádiva. Uma corrente artística inspirada pela
cultura gótica da época emergia no final dos anos
setenta, e podemos enxergá-la em sua forma acabada no cinema
de Burton, para quem tais criaturas não são vítimas
de psicopatia involuntária, mas donos de um poder abençoado,
transgressor, heroico. Não é chaga ou enigma. É
cool. Na monstruosidade, Burton enxerga um herói
excêntrico. Na maldição, uma forma de benção.
Na escuridão, um potencial para as paletas brilhantes.
O repugnante torna-se objeto para estilização. O
trágico, em certa medida, cômico. A morte, uma nobre
forma de vida – oposta à de Craven, Carpenter ou
Ferrara, onde tudo é puro horror, repulsa. Não é
que tudo seja fetiche, mas uma idolatria, um culto que adquire
a forma de uma brincadeira infantil. Desde Vincent, vemos
Burton fincar raízes que nunca abandonou. A expressão
deste fado está em praticamente toda a cultura gótica
moderna, que insurgiu com cinismo existencial e humor negro contra
o cotidiano do estilo de vida e do consumismo dos oitentas.
Sombras da Noite é um remake do seriado de
terror homônimo que faz um retrato deste momento histórico
e, justamente por isto, trata de um vampiro (Johnny Depp) que
retorna à sua mansão decadente de Maine em 1972,
após estar enterrado por dois séculos. A jornada
do vampiro não é somente uma tentativa de se ajustar
no tempo, mas principalmente a de lidar com uma distância
moral, isto é, com o sentido ideológico de sua própria
figura, e esta nova posição da imagem do monstro
em meio à sociedade proposta naquele momento. Assimilando
referências algo distantes entre si, do horror de Ed Wood
à poesia de Poe/Blake ou o expressionismo de Lang/Murnau
como marco plástico, o cinema de Burton sempre tematizou
este retorno da criatura sombria em meio a uma cultura consumidora
de imagens, elegendo a escuridão somente para torná-la
brilhante, adequando-a a um novo ambiente e criando significado
pelo cromatismo, pela dramaturgia humorística que beira
a paródia, pelo olhar lúdico no mundo.
O cosmos de Burton é composto de duas substâncias: luz e trevas. As duas forças do universo engendram duas formas contrárias de amor que figuram em todas as áreas da vida. São dois polos de atração (o amor puro e o amor como poder) que determinam a dialética do destino dos homens. Com este olhar maniqueísta, Burton segue a estratégia narrativa que tem utilizado recentemente de figuras que retornam a um local após anos de ausência. Assim, na tríade recente, discursa sobre os fatos políticos da história, discriminando neles as duas formas de amor. Em Alíce no País das Maravilhas, era a monarquia absolutista baseada no medo e a passagem a um novo mundo; em Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníado da Rua Fleet, a democracia, o contrato social e a noção de justiça na Londres Vitoriana. Agora, em Sombras da Noite, é o capitalismo, a formação das empresas norte-americanas e a imagem que pertence a elas.
Logo ao princípio, assistimos a um breve resumo do problema temático: a migração, o estabelecimento e a decadência da família aristocrata inglesa que prosperou nos EUA. Em seguida, a magia negra da francesa Angelique Bouchard (Eva Green) e a ascensão da bruxa à empresa dominante da cidade. Nas ações e reações do triângulo Barnabas-Angelique-Josette, o diretor esmiúça as duas formas de amor e faz delas um discurso profundamente apocalíptico/trágico sobre as relações de poder no interior de uma sociedade empresarial. A base da trama, apesar de seus histrionismos e reviravoltas (fantasmas e lobisomens que surgem repentinamente), é até certo ponto deixada às claras. Pela fábula moral, reafirma (promete, reclama) a existência de um encanto possível mesmo no mundo mais sombrio.
O
problema de Sombras da Noite é que Tim Burton
já não está mais somente repetindo a si mesmo,
reaplicando o seu estilo a um novo tema, pois mesmo isto exige
uma cautela que não demonstra ter. Esta aposta no exagero
daquilo que sempre fez, caricaturando um subgênero do qual
ele mesmo é um dos inventores, é gesto típico
de diretores que já chegaram ao apogeu de sua forma e a
reaplicam invariavelmente, porém sem o mesmo vigor, sem
a mesma fagulha de novidade, num gesto mais marqueteiro do que
artístico. É onde percebemos que suas piadas ficaram
sem graça, que a dramaturgia ficou burocrática,
que as maquiagens estão exageradas, que o gesto de enquadrar
não atinge os mesmos resultados e que o mundo que outrora
inventara já se torna enfadonho. Pois mesmo desviando-se
totalmente das prescrições do gênero de terror,
infantilizando as regras de um jogo, um método do qual
foi um dos pais, e que se repete hoje em séries como Familia
Adams, Harry Potter ou Crepúsculo,
em outros filmes de Burton havia um mistério, um quê
de novidade. Eram filmes que produziam prazer porque suscitavam
a vontade de participar daquele mundo imaginário –
um que agora, envernizado e pendurado em vitrines, já não
seduz em nada.
Julho
de 2012
editoria@revistacinetica.com.br |