Sonhos
Roubados, de Sandra Werneck (Brasil, 2009) por
Eduardo Valente Um
filme exemplar
É difícil não tentar ler significados
demais sobre o fato de que o primeiro plano de Sonhos Roubados ergue-se
num elegante movimento de grua que desvela a geografia de uma favela carioca.
A grua, principalmente num ambiente pós-anos 80 e 90, é hoje uma destas ferramentas
da linguagem visual do cinema que está atrelado de sentidos para além do que o
seu próprio movimento indica, algo que tem a ver com uma determinada condição
de produção, mas também com um olhar que, ao se colocar de cima, parece acima
de tudo tender para a generalização (pois ele parte sempre do específico para
o todo, incluindo este específico num todo) e a estetização (pois é um movimento
necessariamente elegante, belo) de um ambiente. Ambas serão palavras das quais
não se pode escapar ao lidar com a relação que o filme de Sandra Werneck tenta
estabelecer com a vida de suas três protagonistas. Se a segunda é que nos chama
a atenção neste começo (e nunca deixa de ser uma questão com sua utilização do
scope, de cores hiper-saturadas e de elementos cênicos hiper-pensados, como a
camiseta do América que o avô usa), será a primeira que realmente dará o tom dos
interesses do filme. Idéia de generalização esta que, aliás,
já começa pela escolha de três protagonistas, que da forma como é urdida pelo
roteiro do filme vai deixando claro que tem algo de painel de situações sócio-econômicas
que o espaço e suas circunstâncias impõem. Não é preciso saber que o filme aparece
como resultado da leitura de um livro de cunho sociológico nem que ele surge depois
da realização de um documentário (cujo título, Meninas, poderia ser o deste
filme também) onde o coletivo das experiências é o que dá sentido ao discurso.
Com isso tudo, Jéssica, Sabrina e Daiane, por mais esforço que o filme pareça
fazer em outro sentido (e ele faz bastante, está claro), nunca deixam de ser mais
sintomas do que personagens. A situação dentro da casa de cada uma delas, as pequenas
tramas ficcionais que se urdem em torno delas, e até mesmo seus modelos de comportamento
frente ao mundo nunca deixam de soar como se só fizessem real sentido como soma
de situação que buscam chegar a um todo representativo da situação destas “meninas”que,
nos diz constantemente o filme (e se a grua começa isso, o plano final fecha a
idéia) são apenas três exemplos de muitas outras. São exemplares, no sentido estrito. A
principal maneira como isso fica cristalino na articulação do filme tem menos
a ver com movimentos de câmera e mais com o seu roteiro, e o complemento deste,
a sua montagem. Pois é do roteiro (cuja escritura a doze mãos certamente não ajuda
que se imponha um olhar mais individual sobre o mundo das personagens) que vêm
a constante apelação a descrições de si mesmas e de seus passados a que recorrem
os personagens, mas principalmente a utilização de inúmeras frases cuja principal
necessidade é claramente a de contextualizar, de dar estofo sócio-econômico a
tudo que vemos na tela – frases como “eu não aprendo nada na escola”; “a gente
já perdeu dois meses de aula por causa da greve”; “você acha que se eu tivesse
olhos azuis estaria nessa situação (prisão)”; “quero uma festa de 15 anos igual
a que eu vi na revista”, etc. Se isoladas cada uma delas até poderia fazer sentido
no universo próprio das personagens ficcionais, é a sua utilização em grupo (com
muitas outras não citadas) que vai deixando claro o verdadeiro interesse do filme.
Mas, quem completa mesmo o trabalho iniciado pelo roteiro
é uma montagem que opta por não deixar nunca que nos instalemos de fato em nenhum
de suas cenas. O que mais chama a atenção do espectador ao longo da duração de
Sonhos Roubados, principalmente no quesito sensorial, é como o filme funciona
pela lógica do acúmulo sempre. Todas as suas cenas têm entre um e três minutos,
e vão lentamente criando a sensação de que estamos assistindo uma espécie de best
of da vida destas personagens. As cenas começam e terminam sempre com o mesmo
ritmo, não importando se são momentos dos mais dramáticos ou dos supostamente
mais banais. Se nos dramáticos os personagens entram em cena e falam as frases
necessárias para a história andar ou o drama se instaurar, nos mais banais acontece
a mesma coisa. Nenhum tempo é dado para só observarmos um pouco o tempo de vida
destas pessoas, para torná-las corpos com presença para além da cena. Ficamos
sempre na superfície dos contatos, freqüentemente orquestrados para uma movimentação
de câmera ou posicionamento para ela (são várias cenas com duas personagens falando,
ambas de frente para nós). Tudo parece precisar se dar a ver para que, supostamente,
compreendamos de fato estas meninas – algo que a iluminação dos ambientes só reforça
com uma hiper-visualidade um tanto estranha para os espaços onde a história se
passa. Contra
tudo isso, porém, existe sim uma força no centro de Sonhos Roubados, e
ela está justamente nos corpos das suas protagonistas. A presença em cena das
três (mas principalmente de Nanda Costa, com Kika Farias vindo logo depois) é
algo que parece constantemente querer quebrar os grilhões de discurso que o filme
constrói em torno delas. Seus corpos pedem mais tempo, mais olhar da câmera, que
no fundo parece também querer usá-los, como tantas outras pessoas (e elas mesmas)
usam ao longo do filme. Esta dimensão física, que é também econômica (estes corpos
parecem ser o único horizonte das meninas para gerar dinheiro, numa importância
dada a este último item que é bastante rara e louvável no cinema brasileiro),
é abortada inclusive pela necessidade de colocar Marieta Severo tentando simular
naturalidade como uma cabelereira que vira mãe adotiva, Daniel Dantas fazendo
o mesmo com o tio pedófilo, Nelson Xavier como o avô alcoólatra, Zezeh Barbosa
como a sogra evangélica, Angelo Antonio como o pai ausente – até mesmo MV Bill
como o presidiário, “representando a comunidade”, como sempre faz no seu discurso/prática
fora do filme. São todos desempenhos de performance, de cumprir papéis, enquanto
as meninas tentam apenas ali estar, serem algo para além de exemplos, de sintomas.
Pode-se dizer que elas nunca conseguem de fato atingir esta liberdade, mas não
se pode negar que o esforço que seus corpos fazem para dar conta desta distância
que o filme e sua estrutura nos impõem é o que faz com que Sonhos Roubados
ainda tenha alguma relevância na ordem do cinema. Outubro
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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