Procedimento
Operacional Padrão (Standard Operating Procedure), de Errol Morris (EUA, 2008)
por Julio Bezerra Interrogando
a imagem
“Imagens mostram apenas uma fração de
segundo", diz Javel Davis, ex-agente penitenciário de Abu Ghraib. "Você
não vê pra frente, você não vê pra trás. Você não vê fora da moldura". Esta
é justamente a missão de Errol Morris neste seu mais novo Procedimento Operacional
Padrão: interrogar as fotografias tiradas por soldados americanos em Abu Ghraib.
São muitas as imagens. Algumas são flagrantes, fotojornalismo, como as da mais
diligente das fotógrafas amadoras, a ex-marine Sabrina Harman. Outras, as mais
famosas (pirâmide de prisioneiros, presos na coleira, etc.), são posadas. Foram
feitas porque havia ali uma câmera. Foram criadas para ela. E tudo isso é de certa
forma dependente da evolução técnica da fotografia digital – não é difícil especular
que se tivessem que revelar o filme talvez essas imagens não existissem. Porque
elas existem? Porque foram tomadas? Quais realidades refletem? O que poderia ser
mais seguro, mais concreto do que uma fotografia? O que pensamos sobre as pessoas
que as tiraram? O
filme agrega às essas fotos uma série de elementos (entre entrevistas e
reencenações estilizadas) e faz um esboço de algo maior: toda a história de uma
guerra.Ele é construído como uma espiral movendo-se em torno de si mesmo. E Errol
Morris continua o mesmo: é um cineasta investigativo, um profissional da especulação.
Em Procedimento Operacional Padrão, ele exercita seu talento para reunir
e ordenar evidências e informações e para explorar a relação sempre problemática
e fascinante entre a realidade e a ficção, entre o fato e suas versões, fazendo
uma investigação epistemológica a respeito da natureza da fotografia, um escrutínio
sobre suas limitações. Ao mesmo tempo em que nada garante a “verdade” de uma imagem,
o que ou em quem podemos confiar neste filme, para além das próprias fotografias?
Em geral, documentários querem nos explicar ou resolver alguma coisa. Morris não.
Ele prefere nos deixar à deriva na ambigüidade. Como de costume em seus filmes,
quanto mais se vê, menos se sabe. É
preciso aqui falar do Interrotron. Primeiro usado em Fast, Cheap and Out of
Control (1997), o Interrotron, é essencialmente uma série de teleprompters
modificados que permitem aos entrevistados de Morris olhar diretamente para a
lente da câmera. Assim, os personagens se dirigem à imagem de Morris, mas parecem
falar diretamente para nós. A cada filme, essa nova técnica de entrevista se mostra
aperfeiçoada. O tom confessional dos depoimentos tem se adensado. E eles nunca
foram tão intensos como aqui. São capazes de dar conta da complexidade dos dramas
desses personagens. Sabrina é das mais contraditórias. Insiste estar em Abu Ghraib
em uma missão fotojornalística, mas aparece sempre sorrindo nas mais tenebrosas
imagens. Lynndie England se encontra em uma situação incrivelmente trágica: se
arrepende de tudo, mas lá teve um filho. Culpa dos dois lados. O
entrevistador nunca se impõe como uma ameaça. Morris se recusa a fixar uma verdade
sobre o que quer que seja. Ele não abre mão de conhecer, mas admite uma série
de lacunas. Apesar das muitas entrevistas, o filme conserva uma consciência independente
ainda que sutil, uma voz própria. O documentarista nem sempre aceita a palavra
dos entrevistados: a montagem contesta suas afirmações, mas sem se dirigir diretamente
ao espectador. E Morris nunca é conclusivo ou mesmo direto em suas afirmações.
Mas os sinais estão ali. A montagem nos sugere, por exemplo, que não existe uma
diferença essencial e convincente entre as imagens que representam atos criminosos
e as que descrevem apenas um procedimento operacional padrão. E assim, os sinais
vão se acumulando. O filme dá voz a um ponto de vista que, embora tácito e indireto,
fica difícil de ignorar. Isso
é evidente no uso das reencenações estilizadas, uma das marcas de Morris. Nada
do que tenha feito anteriormente alcança o nível um tanto fetichista de detalhe
de POP. Elas nunca foram tão presentes e intrusivas. Mas
é preciso observar que essas reencenações não estão ali para ilustrar fielmente
como o cineasta acredita que aqueles eventos se passaram. Em geral, elas ilustram
mentiras. Cenas como as dentadas de um cachorro raivoso assumem um tom irônico.
Por mais que os entrevistados pareçam sinceros, por mais que nos comovamos com
a situação em que se encontram, as reencenações estilizadas de Morris nos sugerem
que eles estão mentindo sobre alguma coisa. E não importa o quanto eles revelem,
suas palavras nunca serão satisfatórias. Mas mais do que isso: POP parece
por vezes se refugiar em suas reencenações, na rigidez dos tensos enquadramentos.
A aparência de ficção estilizada é como uma defesa emocional em relação ao horror
filmado. Em POP, não há verdades, apenas horror.
Morris está em terreno metafísico. Outubro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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