Speed Racer (idem), de Andy e Larry Wochawski (EUA, 2008)
por Paulo Santos Lima

As imagens assassinadas

Speed Racer é uma experiência bastante retroativa ao cinema. Diante do fluxo granulado e esquizofrênico de planos proposto pelos irmãos Wachowski para as cenas de corrida (centro do filme), a retenção de alguma imagem só é possível fora da experiência do cinema, vendo-se os stills. Somente com esse material é possível identificarmos, por exemplo, as linhas de alta arte industrial do carro do herói (o Mach 5, que inclusive ilustra o topo deste texto, aqui ao lado), os oponentes, a platéia, a disposição dos carros e outros elementos no espaço da pista e todo o carnaval de acontecimentos e objetos dessas competições. Tal procedimento é um retorno quase intergaláctico: volta-se para a fotografia estática dos tempos pré-cinematográficos.

Mas isso não chega a ser um feito propriamente radical, pois mesmo essas cenas de ação e, principalmente, todo o resto do filme (as cenas dramáticas, sobretudo) seguem a convenção atual do cinema de entretenimento norte-americano, com uma fluidez que barra a duração das seqüências e uma fragmentação de planos e de pontos-de-vista que desnorteia o foco adotado para um determinado espaço. Algo feliz no caso do Paul Greengrass de Supremacia Bourne e tenebroso nas fitas assinadas por um Roland Emmerich e Michael Bay, por exemplo. É a este último, aliás, que as cenas de corrida de Speed Racer parecem se assemelhar, ainda que a grossa calda de cores e de elementos abstratos e estilizados presentes nas tomadas potencialize a perdição do olhar, numa montagem e enquadramento que simplesmente não criam nenhuma relação entre carro e outro, personagem e outro, o campo e contracampo.

Lembremos que o filme dos Wachowski não pretende uma implosão narrativa, o que se confirma em certas informações dramáticas salpicadas em meio ao fluxo imagético. O conteúdo dramático, aliás, que é presente mesmo numa rarefação quase total, acaba sendo o dado mais palpável aqui, inclusive também confirmando certas fórmulas da produção contemporânea hollywoodiana que versa sobre certos valores afins da cultura estadunidense: a ameaça externa contra a límpida bolha familiar, o valor máster da coragem e da competitividade para fins “nobres”, a superação dos traumas, a missão delegada, o maquinário econômico sendo ruim e corrupto na medida em que machuca a família ou barra o dom olímpico do protagonista.

Coragem, amor, justiça e família, enfim, estamos no território de convenção e conservação, e a adoção irrestrita do chroma-key, recurso secular, é só uma coerência estética ao que se está sendo falado, ou um grifo sobre o uso de um maquinário industrial já disseminado. O recurso da tela azul existe desde o fulgor do cinema clássico, e a era dos blockbusters, já no fim dos 70, reavivou-o ao nível de uma naturalização e freqüência até hoje. Seria pouco relevante citar Capitão Sky e o Mundo de Amanhã (2004) a não ser para reavaliar que Speed Racer muda o traço, mas não o desenho da empreitada – realizada anos atrás e, agora há pouco, em Sin City e 300. Curioso que esse cinema que redesenha a presença humana sob novas configurações, pautadas pelo CGI, sobretudo, aproxima-se de outras expressões, como os desenhos (animado e estático), e, recentemente, ao videogame (ainda que a equivalência fique restrita ao pictórico dos jogos, com suas cores berrantes e objetos de linhas completamente libertas do mundo real, e não à natureza dos games, que adotam a continuidade do plano-sequência e não o estilhaçamento da “cena”).

Mas esse passo que seria, em princípio, algo avant-garde, que recriaria ineditamente a superfície dos objetos em cena, na verdade é apenas uma nova gramática para se chegar aos mesmos fins: o drama. Se o ponto de partida é a captação de uma cena classicamente enquadrada (personagem dentro de um espaço recriado, neste caso aqui, com efeitos da tela azul), e a montagem zera-lhe o tempo de duração, não há uma lógica que crie organismo entre a “abstração” resultante do ritmo e o que se está a falar. Na corredeira de imagens, presença múltipla de personagens em tempos diegéticos distintos, sons ultra colocando-se em sobrecamada na faixa sonora, as placas de sinalização estão à nossa visão: protagonista e antagonistas, carro, família...

E vitória. Não à toa, na sessão a que assisti, uma menininha de não mais que 5 anos, tão perdida ao longo do filme quanto a mãe, compreendeu muito bem o final, quando Speed vence a corrida. As tomadas de 1,5 s, mostrando bandeiras, faces e aplausos dos torcedores, transmitiram a mensagem à infante. Fotos fariam o mesmo, decerto – uma graphic novel, por exemplo. A velocidade dessas fotos talvez crie menos abstrações (e nenhuma abstração poética, é certo) que reduções, menos reflexões e mais narcolepsias sensoriais. Uma hemorragia visual que faz correlato à bomba H que os EUA soltaram em 1952 apenas para provar aos soviéticos de seu poderio. A indústria do cinema pode recriar mundos e mostrá-los em velocidade acima da estabelecida em nossa contemporaneidade, que exige multi-foco e sobrevôos panorâmicos. Assim como a bomba, o passo à frente é a ré engatada. É o triunfo da técnica sobre a vida. A vida que, no cinema, é a imagem.

Maio de 2008

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