in loco - VI CineOP
Pondo os pingos nos is
por Paulo Santos Lima

O Homem do Sputnik, de Carlos Manga (Brasil, 1959)

A idéia pronta do "país sem memória" casa bem com os propósitos que caracterizam a Mostra de Cinema de Ouro Preto, que nesta sua 6a edição escolheu a chanchada e o cinema popular dos anos 50 como foco principal. Se a pretendida revisão histórica sempre acaba sendo, na prática, uma primeira visão, uma descoberta, o motivo é sempre o mesmo: estamos falando menos de um esquecimento e mais de uma ignorância, um desprezo, sobre o que produzimos artisticamente. É, também, uma falta de consciência histórica, pois essa "história" serve apenas como repertório de valoração. Um dos exemplos lapidares é o do Cinema Novo, depilado de suas complexidades e servindo como um "valor" para a burocracia, essa dos tecnocratas do poder e da produção cultural. É assim que a chanchada existiu como dado concreto (os filmes, a sua capacidade de imantar o público, a repercussão) aos que estiveram junto a ela nos anos 40, 50 e 60, mas foi se apagando ao ponto de hoje ser uma abstração. É nessas que se pode, de repente, pegá-la e compará-la às comédias de apelo popular da GloboFilmes, as denominadas neochanchadas. Uma apropriação indevida e imbecil, feita por quem não possui conhecimento de causa, por quem desconhece o que significa "popular". Ou os catequizantes filmes do CPC também não se pretendiam obras para um consumo mais largo?

MangaEssa neochanchada não foi assunto destrinchado nos debates da CineOP, mas nem precisou: o festival já teria cumprido seu papel na noite de abertura, quando exibiu O Homem do Sputnik, com a presença de seu diretor, Carlos Manga (foto, cedida pela Universo Produção), o homenageado deste ano. Na tela grande, fora do quadro exíguo da TV, longe dos preconceitos, e numa boa cópia em película, ficou mais fácil discernir o que é a chanchada _e o que não é. A tela do Cine Vila Rica poderia ser chamada de lousa. Ali estava uma pequena grande aula sobre cinema narrativo, releitura, humor, olhar agudo sobre o mundo de 1959 e o uso devido do repertório de Hollywood e do teatro de revista. Em síntese, um olhar de cinema.

O Homem do Sputnik contra a neochanchada

Nesses primeiros minutos de CineOP, alguns dados substanciais antes do longa. Da resposta sardônica de Carlos Manga quando, em fala ensaiada, convidaram-no a assistir a O Homem do Sputnik e ele disse "acho que eu já vi esse filme", meio fazendo sacudir toda a encenação empostada e ensaiada demais da cerimônia de abertura, extrai-se a essência da chanchada segundo Manga, seu maior cineasta: a ironia e tenacidade crítica diante daquilo que está na frente (o mundo, inclusive). Minutos antes da resposta, houve o choro de um diretor que não raro emociona-se, mas cujas lágrimas, ali, comentavam a surpresa de um realizador que fez "esse tipo de filme" em receber tal homenagem séria: para um país com tantos complexos e baixa alto estima, ser popular é demeritório, e a história do nosso cinema nos diz isso há tempos, da Vera Cruz e os defensores de um cinema cosmopolita no passado à tal "retomada" orientada por essa idéia do "bem-feito".

SputnikO papel que O Homem do Sputnik ganhou na grande noite não foi brinquedo: dar conta de toda uma filmografia, a de Manga, que seria a versão refinada da chanchada que outros, como José Carlos Burle e Watson Macedo, realizavam no mesmo momento. Também formal (Manga era quem melhor decupava a cena, impunha um ritmo azeitado à lógica cinematográfica e contava sempre com roteiros quase avant la letre), esse "refinamento" era político, de política da imagem: através da encenação. É aqui que o filme da noite, em chave mais "didática", se coloca.

Antes do enredo, o artista: Oscarito. Também homenageado, in memoriam, pelo festival, este ator é o corpo único de uma série de cinemas. Falo mais sobre ele no outro texto. É nos braços de Oscarito, fazendo o simplório Anastácio Fortuna, que o filme mostrará sua iconoclastia, dessacralizando um grande símbolo da política mundial: o satélite soviético Sputnik, que cai em seu galinheiro. Na ignorância sobre o que é aquela peça esquisita (ridícula, parecida com um galo cata-vento posto no telhado das casas campestres), Fortuna segue o impulso natural de ganhar uns trocados  em cima, o que acaba motivando a disputa entre norte-americanos, soviéticos e franceses. Norma Bengell fazendo troça a Brigitte Bardot é tão conhecido que mais vale citar o trio de russos, ou o americano infantilizado e bestalhão de Jô Soares.

O longa, de modo geral, segue um dos mandamentos do Luz de O Bandido da Luz Vermelha (e da chanchada mais inteligente, ou seja, aquela que se leva a sério na realização e menos na fidelidade à matriz copiada) e avacalha. Anárquico à beça, antes de parodiar o cinema, O Homem do Sputnik parodia a ordem das coisas, o seu momento. Raras as vezes o Cinema Novo alcançou um discurso tão político, e isso retornaria mais efetivamente, em chave similar, no Cinema Marginal. É a chanchada, já vista na época como sinônimo de precariedade técnica e crítica, antecipando aqui muita coisa que estaria no exercício dos cinemas novos mundiais a partir desse mesmo 1959.

A neochanchada hoje e nunca

SputnikO Homem do Sputnik, sozinho, desmantela a tese que aproxima a chanchada dessas comédias anos 2000. Lá, nos anos 50, sobretudo, o diálogo era com o cinema - e não à toa Carlos Manga foi para a televisão levando um olhar bastante cinematográfico. Sem dúvida, a TV puxou para si muita coisa da chanchada (basta ver o sexualíssimo Pintando o Sete, também de Manga, e ver de onde surgiu o desfile de casais das telenovelas, que converteram numa chave moral-hipócrita). E esses filmes relacionavam-se com o mundo. Os da GloboFilmes dialogam com a própria TV, ou seja, consigo próprios. Não são derivações anárquicas, mas sim repetições, extensões . A chanchada, quando mais comportada à matriz, pegava bastante de fora esses itens: o teatro de revista, os cantores do rádio, e traziam a novidade de revelar a imagem da voz.

Ou seja, é uma questão de olhar: ou se mira no ao redor, no além do horizonte, ou se centraliza o foco no próprio umbigo. E o corpo da televisão brasileira está longe de ser dos mais interessantes. É uma questão, também, de evidência: as ótimas chanchadas dialogavam e faziam páreo com a ótima comédia norte-americana, de um Oscarito remetendo ao circo, a Chaplin e a Jerry Lewis a um Carlos Manga até antecipando o que um cineasta como Billy Wilder faria anos depois (O Homem do Sputnik parece uma prévia de Cupido Não Tem Bandeira, de 1961); os filmes populares anos 2000 não chegam aos pés da ótima comédia americana atual, repetindo apenas a dramaturgia das telenovelas e programação noturna da Globo, em estética Malhação. Hoje, essa produção significa um mau uso da tela grande do cinema; um desperdício, pois o olhar é o da acomodação que a TV aberta brasileira não abre mão. A chanchada era anarquia, deboche, observação. Não é mérito, e sim um escândalo histórico transformá-la num adjetivo, uma ferramenta para outro tipo de cinema cujo contexto de realização é outro. Isso que agora querem chamar de "neochanchada"é a repetição, como uma cadeia de fast-food com suas filiais. Histórica e injustamente desprezadas, as produções da chanchada foram das mais felizes experiências de cinema narrativo do país.

Julho de 2011

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