Star
Trek (idem), de J.J. Abrams (EUA, 2009) por Paulo
Santos Lima A
(não)imagem da razão Termo da moda, tamanho
o grosso caldo de seqüências que em vez do “a seguir” vêm optando por voltar no
tempo e esmiuçar as origens dos personagens e seus dramas, o prequel, hoje,
não é nada além de uma irrelevância cinematográfica, uma mera escolha temática
sem grandes ecos estruturais ou formais. Diante desse quadro (cuja exceção, até
então, era o formidável trabalho de Coppola em O Poderoso Chefão Parte 2,
no qual uma dialética entre a gênese e o degringolar da família Corleone escorria
para uma síntese aos estilhaços, com deslocamentos e tempos pendulados), o que
J.J. Abrams faz com seu Star Trek é algo extraordinário.
Temos,
finalmente, um filme que constrói, a partir da experiência (fisicamente absurda)
do prequel, um certo estado de perplexidade generalizado. Ou, na síntese
da experiência, uma “crônica” sobre o absurdo científico. Porque, uma vez limítrofe,
enganamo-nos sobre a onipotência da ciência. Ou melhor, iludimo-nos. Modo contrário,
o prequel, as fraturas na linearidade temporal, as visitas ao passado etc.
poderiam ser, sim, possibilidades físicas. Mas não: as viagens no espaço-tempo
só ocorreram, até agora, no plano mental (das artes – o cinema e a literatura
sobretudo). Então, se a própria lógica que parece imperar no cinema industrial
(com suas regras, equações, limpidez mesmo que mínima de enunciado, coesão, sentido
claro, etc) é de que tudo isso seria sábio, científico, lógico, o que Star
Trek oferece é uma certa dinâmica da impressão, quando não da trapaça. Isso
se dá tanto na forma quanto na própria diegese – e, por fim, em como apreendemos
o organismo de imagens.
Teremos,
em síntese, um filme sobre os primórdios da tripulação da USS Enterprise, inclusive
em seu vôo inaugural, sem deixar de passar por alguns DNAs essenciais, como a
gênese de James Kirk vista literalmente no parto da mãe assistido pelo pai sob
ataque de nave romulana (que culmina numa imagem belíssima, remetendo a algo orgânico,
de fertilização, com a nave avariada indo de encontro mortal à nau inimiga). O
longa já começa num falseio incrível: vemos uma nave em primeiríssimo plano, tomando
a tela, e nos parece claro que é a Enterprise. Pois é a USS Kelvin, comandada
pelo pai de James Kirk, e não é à toa que a primeira aparição do pai poderia bem
ser a de seu filho. Haverá outras cenas, como a de um carro do nosso século em
alta velocidade, que na verdade mostra o jovem Kirk com uma relíquia, numa imagem
bastante parente de um road movie atual – sobretudo porque vem após uma
legenda que estampa “Iowa”.
Não
somos apenas nós a nos equivocar. Junto a nós, os personagens também entram numa
seara complexa de tempos sobrepostos, criando laços improváveis, fazendo inclusive
algo dramaticamente transgressivo, na medida em que o vilão, o comandante romulano
Nero, é um ser trágico que busca equivocada justiça, e é o único que tem certa
ciência e trânsito entre os tempos. De fato, o início de Star Trek já é
o passado para os romulanos, que perderam seu planeta e clamam por justiça perseguindo
um velho Spock quando este ainda nem havia nascido. No meio do caminho desta busca
por justiça, Nero encontrará o jovem Spock. Difícil explicar
melhor a lógica temporal, que se faz quase “obscura”, “ilógica”, com a multiplicação
de viagens espaço-temporais seguindo algo eisteiniano, também presente
em tantos outros filmes de ficção. A própria missão áurea e legítima da Federação,
que tem como síntese estética a alvura cândida da USS Enterprise, ganha alguns
contornos selvagens – seus tripulantes pautam-se pelo racional, detêm o
conhecimento científico sobre o universo, mas na hora “H” será a intuição quase
animal e tresloucada de Kirk, que inclusive foi convocado para “agir sem pensar”,
que trará êxito às manobras. Nisso, a figura de Spock tem relevo especial, uma
vez que, mestiço entre vulcano e humano, ele terá de equalizar suas porções lógica
e sentimental. Idem os romulanos, agentes sentimentais em contrapartida ao protocolo
lógico dos federados. Ou seja, tudo fica um tanto emaranhado, e num local tão
dependente da lógica e do raciocínio para fazer valer as coisas (falamos do diegético,
mas também do cinema de ficção científica), tamanha legitimação e presença da
impulsividade é um grande achado.
Mais interessante nem é o quanto Star
Trek está na baia subversiva ao modelo, tampouco os disparates experimentados
e os arroubos cometidos pelos personagens. É na própria confecção e dinâmica dos
planos que se confirma a dualidade e, também, amálgama entre a razão e o instinto,
entre a lógica e a insensatez. No conceito atual do cinema de entretenimento,
a sensatez estaria em montar uma superestrutura bastante clara e domesticada,
e trabalhar com um fluxo caudaloso de planos curtos. J.J. Abrams segue este postulado
de modo geral, mas em determinado instante ele simplesmente “sabota” a orquestra.
Assim, temos algo permeado de “não-imagens” e “imagens” (no sentido do quadro,
do pictórico e da retenção fotográfica): em meio a um vasto fluxo de imagens curtas,
em aceleração total, excessos informativos e diálogos a todo momento, surge um
plano de extremo acuro que serve primeiramente para a contemplação e menos para
a informação ou avanço narrativo. É juntar duas lógicas distintas (ou uma lógica
e uma loucura): uma que trabalha a imagem pelo acúmulo de fragmentos e a outra
que aposta numa única imagem para avançar com a história ou para digressionar
e confirmar um cinema com “C” maiúsculo. É, também, juntar uma estética da violência
presente nos planos faiscados e uma imagem da serenidade presente nos planos contemplativos.
O
grande exemplo disso está na seqüência inicial, no qual a violência do ataque
de lasers contra o casco da USS Kelvin e seus tripulantes, e o contra-ataque
de phasers, devidamente apresentados em alto fluxo de imagens, cede lugar
ao tal plano já citado das naves colidindo – algo que alude a um “inseto” romulano
com algumas naves saindo dali. O som também participa do balé proposto por Abrams,
e temos, em meio a explosões ensurdecedoras, o choro do bebê saindo à vida. Essa
seqüência inicial é uma ótima síntese do que vai ocorrer ao longo do filme: o
convívio de imagens e sons contrários, trazem ao mesmo rolo de negativo forças
antagônicas, entre destruição e nascimento, beleza e terror, equilíbrio e desarranjo,
percepção e colapso sensorial. O momento, contudo, que define
claramente o conceito de Star Trek é o da aparição do velho Spock, encarnado
por Leonard Nimoy. É, talvez, o melhor plano mostrado no cinema lançado no Brasil
até agora neste ano. Temos o jovem Kirk, de costas para nós, acossado por um medonho
monstro glacial, que está mais ao fundo. O ambiente é todo gelo. A parte esquerda
do plano em scope fica mais clara e logo surge uma tocha que vai migrando
para o centro da cena juntamente com seu condutor, Spock/Nimoy, que aparece de
costas. Já no centro do plano, ele afasta a fera, salva o protagonista, coloca
uma cor quente na cena e dá centro ótico ao enquadramento. Tudo isso num plano
único, que reúne uma série de elementos reconhecíveis (os filmes de monstro, o
impulsivo protagonista que já conhecemos há cerca de uma hora, o grande Spock
atuado pelo simpatia Leonard Nimoy, a
bestialidade ameaçando o coreto, a sabedoria de Spock conduzindo a luz à função
certa). Temos ali uma cena em que o desequilíbrio é mitigado, mas que, pela presença
quase “alienígena” de Spock, nossa percepção dá uma golfada, sai para o espaço
extradiegético (não à toa a primeira aparição de Spock transita do extracampo
para o quadro). É um curto-circuito curioso, justamente porque a inserção de Nimoy
no filme se dá menos pelo drama e mais pela metalinguagem, mais pelo conceitual
do que pelo roteiro, mais como objeto externo do que como personagem. Não é por
menos que ambos os Spocks, o jovem e o velho, encontrar-se-ão em certo instante,
numa situação que ultrapassa Zemeckis e vai parar nas redondezas de Buñuel. Spock
é uma inserção fantasma, de um cinema antepassado, uma quase aparição em forma
de luz. A partir disso, seria até insano, mas é também interessante
arriscarmos que a cifrada lógica de mundo criada por J.J. Abrams para este seu
Star Trek tem algum parentesco com os trabalhos do cinema experimental.
A mecanização de lá ressurge aqui, por força obrigatória da ficção científica.
Claro que a coincidência não surge pelo procedimento, pois havia uma ruptura e
experimentação total nos procedimentos daqueles artistas dos anos 1920, mas sim
pelo resultado, que convida a uma experiência bastante sensorial e dúbia, quase
espiritual, surreal. Junho de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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