in loco - cobertura dos festivais

Still Life – ainda inédito no Brasil
por Eduardo Valente

Ao sabermos que não teríamos um só redator credenciado para cobrir a Mostra de SP, optamos por não exibir o logo da Mostra na nossa cobertura (ao contrário do que fizemos no Festival do Rio), como forma sutil de indicar que não podíamos apoiar um evento que nos desconhece como críticos. O que importava, assim (sempre, mas mais do que nunca), eram os filmes, por isso escolhemos um para destacar anteriormente mesmo a vê-lo, colocando sua foto como abertura da nossa cobertura – e o escolhido, sem dificuldades, foi Still Life, novo filme de Jia Zhang-ke, cineasta cujos filmes anteriores nos arrebataram, e que vinha de um Leão de Ouro em Veneza, em competição cheia de grandes filmes.

Quão irônico: assim que, cheios de excitação, alguns de nossos redatores foram ver a primeiríssima exibição de Still Life na Mostra (sábado, dia 28/10, na Bombril 1), começou uma das maiores comédias de erros da nossa cobertura. O filme, anunciado no catálogo como sendo exibido em 35mm, surgiu na tela numa cópia digital de tosquidão quase inacreditável: cores alteradas (as mais fortes saturadas, as mais fracas esmaecidas), linhas horizontais dignas de VHS de má qualidade, falta de definição precisa, momentos de completa pixelização da imagem, som “achatado”. Sendo isso pouco, o filme ainda estava com o formato adulterado, distorcendo os personagens – o que foi “corrigido” na metade da projeção, depois do projecionista testar todos os formatos possíveis com uma cena em andamento. Fantasticamente simbólico que, numa cobertura que começa com nosso questionamento das prioridades da Mostra em relação à sua cobertura crítica, a nossa imagem-símbolo de amor ao cinema seja de um filme que foi projetado nestas condições na Mostra.

Nas exibições seguintes, pequenas melhoras não disfarçam o óbvio: trata-se de uma cópia digital de baixa qualidade a que foi colocada a disposição na Mostra – o que, aliás, não é uma primeira vez, e aconteceu em anos anteriores, por exemplo, com Ninguém Pode Saber, de Hirozaku Kore-eda. Eu tentei ver o filme na terceira exibição (Espaço Unibanco 3, na segunda, dia 30), e abandonei a sala depois de dez minutos. Talvez se aquele fosse um filme captado em mini DV pelo cineasta estreante “José das Couves”, fosse possível assistir aquela cópia. Sabendo quem é Jia Zhang-ke, quem é Yu Lik-wai (fotógrafo deste), melhor não. Seria isso ou ver e tentar formular um pensamento sobre a alteração estética da obra de Jia, que, a julgar por essa cópia, agora usa o tosco como linguagem audiovisual.

Curiosamente, a Mostra deu três tipos de resposta sobre o assunto: o silêncio oficial (não houve qualquer menção ao fato no site do evento, ou qualquer anúncio feito pelos organizadores antes das sessões depois da primeira); o descaso extra-oficial (o funcionário da assessoria de imprensa questionado depois da primeira exibição disse que “só crítico reclama disso”, ou perguntou se “vocês preferiam que o filme não passasse?” - ao que a minha saída da sala dá certamente resposta positiva, ou indica ainda que o filme não passou, de fato); e, finalmente, o deboche à boca pequena (testemunhado por colegas que estavam escrevendo na sala de imprensa no dia seguinte, e que ironizavam as reações dos críticos que reclamaram – no caso específico da Cinética a revista em si, com pérolas da delicadeza como “reclama com o Jia Zhang-ke”, “o que é Revista Cinética?” ou “quem é Cléber Eduardo”). Toda essa lógica-brucutu explica um pouco coisas que acontecem cada vez mais no circuito, onde a ignorância prática do público é usada como desculpa para oferecer qualidade baixa de serviço (“ninguém percebe/reclama”, ou “melhor isso do que nada”), sempre a preços bem altos. É isso aí, este é o amor pelo cinema que grassa nos nossos tempos. E quem reclamar é que é chato, raivoso ou paranóico.

Para Cinética, que compreende todo tipo de contratempo, só não entende desonestidade em relação a eles, o que importa mesmo é que Still Life continua inédito em cinema no Brasil. Se não passar nunca mais, baixem da internet e vejam em casa: crime por crime, este pelo menos não prejudica diretamente ninguém, e respeita mais o cinema.

 


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