Mais Estranho que a Ficção
(Stranger Than Fiction), de Marc Forster (EUA, 2006) por
Cléber Eduardo
Entre o esquema e a vida Um dos
pilares sobre os quais é pensado Mais Estranho que a Ficção é o tempo das
ações. O tempo é o dispositivo narrativo e elemento
aprisionador do protagonista Harold Crick (Will Ferrell), um fiscal da receita
federal, de rotina disciplinadamente inalterável, que planeja a duração de cada
atividade sua, cumprindo-a, rigorosamente, sem o atraso de sequer alguns segundos.
Uma máquina de cumprir prazos, apoiado em rigor matemático, numérico, de uma ciência
de exatidões aparentes. Será preciso o relógio dele sofrer uma pane temporário,
antes de salvar sua vida, para ele se libertar do tempo útil, controlado, da produtividade,
da precisão matemática, conhecendo, no lugar, o tempo inútil, da observação, da
contemplação e da experiência desinteressada por atividades ou pessoas. Essa transformação
se dá a partir do contato com uma confeiteira de atitude rebelde, caloteira ideológica
do imposto de renda, por quem o “cdf” Harold Crick derrete-se todo e comete transgressões
em sua ortodoxa conduta normatizada. É preciso quebrar a lógica industrial do
tempo para descobrir o valor da experiência em si mesmo. No entanto, mesmo ao
contato com as experiências inseminadoras de vitalidade em seu estar no mundo,
ele permanece automatizado, experimentando a nova fase com a mesma letargia de
quando somos apresentados a ele no início. Um outro pilar
de sustentação é o planejamento da vida de Harold Crick pela escritora Karen Eiffel,
uma inglesa deprimida, com olhares de quem está surtando, cheia de caretas estereotipadas
de maluca, que não consegue dar um fim a seu romance, e, em luta contra o tempo
da produtividade, ganha como companhia uma assistente enviada pela editora, que,
para o prazo não ser desrespeitado, aplica sobre a autora a cultura da precisão
de Harold Crick. Ou seja, o problema de Karen, mais que de técnica, ou mesmo de
imaginação, é de ritmo da atividade. Ela não vincula arte a cronômetros. Não respeita
o tempo do capital, mas o da criação sensível. Vive com o corpo estático, pensando,
observando, à espera de uma inspiração. Não faz outra coisa a não ser subverter
a dinâmica de produção. É tão rebelde quanto a caloteira de imposto de renda.
Karen Eiffel, por outro lado, paradoxalmente, é a própria organização empresarial.
Ela cria um esquema repetitivo para seu personagem viver dia a pós dia, sem deixá-lo
sair dessa estufa para respirar um pouco a energia vital. Vemos nessa relação,
dentro do filme, um conflito entre roteiro e mise-en-scène, entre a programação
e a experiência, entre a lógica da narrativa e a da vida. Harold
Crick ouve ocasionalmente a voz de Karen, que narra as ações dele tão logo ele
as executa, que dá palavras a seus pensamentos e que afirma a proximidade de sua
morte em um momento banal de seu cotidiano. A maior parte do filme está centrada
na investigação de Crick sobre a origem daquela voz onisciente. Ele tem de entender
o fenômeno para salvar a própria vida e conta com a ajuda de um crítico literário
(expediente próximo do empregado por M Night Shyamalan em A Dama na Água,
mais um filme sobre a própria lógica de uma narrativa). Vai se dar conta de que,
por um absurdo (o qual temos de aceitar ou sair da sala), é personagem de um livro.
Uma escritora de imaginação travada, Karen Eiffel (Emma Thompson), manipula cada
uma de suas atividades. Ela produz sua sibjetividade e suas decisões. Crick então
tem que, como personagem, reagir contra o autor. Tenta colocar a lógica da vida
dele sobre a lógica dramática-narrativa dela. Faz a defesa da experiência real
contra um experiência programada. Crick precisa libertar-se do esquema organizador
de seus sentidos. É como se a filmagem, pela boca do personagem, pedisse para
se libertar do roteiro. Mas não se liberta. Continua programada e aprisionada
pelo roteiro. Chegamos ao ponto onde a transformação do
personagem e a relação dele com a escritora se imbricam. Assim como a transgressão
ao tempo programado parece não tirar o protagonista de sua automação, a reivindicação
do filme por menos programação e mais improviso da experiência não é atendida
na imagem. Mais Estranho que a Ficção é o típico filme-esquema dos anos
2000, com uma estrutura de acontecimentos competindo com os acontecimentos, com
uma lógica interna um tanto exibicionista, com a demonstração de uma inteligência
óbvia em seu caráter demonstrativo, mantendo essa arquitetura acima do sopro de
vida no quadro. Não se trata de negar valor a esse segmento do cinema, ao qual
poderíamos associar algumas características de Jorge Furtado, dos curtas de Philippe
Barcinski, dos roteiros de Charlie Kaufman e de alguns momentos de Jean Pierre
Jeunet e Paul Thomas Anderson, que, de diferentes modos e com êxitos distintos,
também transitam pelo “filme-esquema”. No entanto, no manuseio desses jogos de
armar que se autotematizam na narrativa, Forster é sorumbático, sem conseguir
produzir vida com o esquema, tampouco fazer do esquema um espetáculo de artimanhas. Forster
mostrou em outras experiências (A Última Ceia e Gritos na Noite)
um encontro entre respeito aos códigos e a experiência da filmagem, procurando
a construção dos personagens sem abrir mão de fazer deles seres possíveis de existir.
Harold Crick é diferente. Ele apenas existe como imagem, como código, como símbolo
de algo a ser comunicado, como um recado para o espectador. Não é uma vida que
vemos na tela, mas a imagem consciente de ser imagem, de ser representação, de
ser a ilustração de uma idéia dramática, de um esquema narrativo, já solucionado
fora do set – ou assim parece. Esse distanciamento do que está sendo mostrado,
da vida na tela, é salientado pela mise-en-scène culta e “pensada”de Forster,
que, além de escolher ângulos inusitados e procurar enquadramentos de efeito artístico
(com ares de rigor plástico derivativo de Ozu e Antonioni), é consciente excessivamente
da existência de O Processo, o Kafka por Orson Welles, com a grandiloqüência
dos espaços internos mais amplos e o campo de profundidade berrando para ser notado
como peça chave da ambientação. É óbvio que, com todas essas
referências, com essa cultura cinematográfica às vezes asfixiante, não faltaria
uma fundamental, a de O Show de Truman, de Peter Weir, do qual difere por
não ser a escritora consciente dos estragos de suas palavras. Ela não é um gênio
maligno, mas um poder divino em crise: sem inspiração, surtada, que não tem controle
sobre sua criação e, ainda por cima, é afetada por seu personagem na condução
da história. Pois faltou a isso a Forster: ser afetado pelos personagens. Não
é o caso de negar reconhecimento a um talento, mas o de questionar se esse talento,
nesse filme, não se limita a construir planos com vontade de impressionar.
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