in loco - cobertura dos festivais
Strovengah - Amor Torto,
de André Sampaio (Brasil, 2011)
por Rodrigo de Oliveira

Um amor de criatura

"Strovengah", o nome que se dá a uma confusão que não tem nome. É curioso como esse neologismo, aparentemente tão afeito ao cinema de André Sampaio, ele mesmo inominável, se bate frontalmente com a ponta conceitual mais evidente, de uma firmeza e uma elegância de registro que este seu primeiro longa-metragem de ficção apresenta. Strovengah é, de alguma forma, o filme que reconcilia o cineasta de O Palhaço Xupeta e Polêmica ao de Estafeta e Guilherme de Brito: a iconoclastia universitária com a sobriedade respeitosa - porque o foco direciona-se, aqui, para a natureza do olhar, muito mais que a do objeto observado.

Em seus curtas, André Sampaio sempre trabalhou numa chave de invenção que atualizava as operações marginais a partir de uma mistura do pior-melhor cinema comercial brasileiro, do filme americano de subgênero e de tudo aquilo que se entende por cultura popular quando se está nos arredores de um bar, de um terreiro ou de uma sala que exiba os filmes daquelas duas inclinações. Há uma precariedade evidente neste tipo de contato, neste realizar-ao-nível-do-chão, ali onde a referência e a representação já não se distinguem tanto, justamente porque este é um espaço vivo, que convoca taxativamente a câmera a participar de seu movimento natural, confuso, polifônico. Assim, em Strovengah, quando o ex-publicitário Pedro (o grande Otoniel Serra) se isola com a mulher numa casa na Região Serrana do Rio (bem longe do nível do chão, digamos) e traz para perto de si manequins estáticos, sem vida, para servirem de inspiração para um romance que escreve, dá-se o oposto da precariedade. Pedro é o protótipo do artista voluntarista, profundo e todo-consciente em seu exílio criativo nas montanhas, controlador não só da obra como das musas que a inspiram (bonecos que têm a cara do Sean Connery da época de James Bond, uma fotocópia de Ringo Starr, femme fatales e velhos pederastas).

O jogo mais bonito de Strovengah, no entanto, é fazer chocar esta ilusão do domínio – da palavra, do gesto artístico, da criação – com um descontrole “de força maior”. Há uma sensação estranha de uníssono nesta serra sempre nublada e silenciosa. Ela está expressa na onipresença narrativa de um velho cego, moldado nos oráculos clássicos; na postura grilo-falante assumida por dois empregados do sítio em que Pedro e a mulher se hospedam; no curioso culto religioso capitaneado por um pastor suspeito; e, por fim, no próprio ponto de vista que a câmera por vezes assume - um personagem sem corpo, sem nome e sem voz, mas que se instala no filme de maneira radical, contribuindo com as doses cavalares de suspense que irão levar Pedro e seu projeto romântico-artístico à ruína. Esta serra é um organismo de cinema, em primeiríssima instância: um lugar onde o exercício do olhar é rico, consistente, refinado até, porque é a observação, e não a experiência em si, o seu estado de natureza. E todos os que nela se encontram tomam parte, de maneira compulsória, desse exercício.

E assim, Strovengah vai apresentando um momento de grande cinema atrás do outro, pagando tributo a este ambiente onde tudo se vê como se fosse o próprio filme mais uma das criaturas dessa serra encantada/perversa, e não seu criador original. É uma relação curiosa esta, sobretudo diante das experiências anteriores de André Sampaio em longa duração, com a eterna negação da autoria em Conceição – Autor Bom é Autor Morto, e depois a problematização do cinema a qualquer custo (o preço às vezes é alto demais) em seu contato com Luiz Paulino dos Santos em Estafeta. O universo de Strovengah é tão mais sobrenatural e malicioso quanto mais se perceba, por trás de tudo, o controle narrativo e a maturidade estética que André ambiciona. Uma seqüência de transe coletivo na igreja local, digna de antologia em toda sua intricada decupagem e frenesi rítmico, é contraposta a um delírio flanante de um motoqueiro imaginário em longo e delicado plano-seqüência, e assim “todos os olhos” vão se alardeando e se antagonizando. Um filme agressivalegre, para usar outro neologismo, este cunhado por Jean-Claude Bernadet. Desses que apontam para um cineasta que está no auge da forma e, também, apenas começando.

Dezembro de 2011

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