edição especial curtas brasileiros
2009 O traço do tempo por
Luiz Soares Júnior
Sumi, de Marina
Fraga (Rio de Janeiro, 2008)
O ideograma
é a forma de linguagem sintético-conceitual por excelência: nesta “cápsula” –
ou porta-imagens – cabem muitas imagens, que o início do filme Sumi vai
descortinando diante de nós: memórias esparsas de campos de trigo alagados em
plano geral, distendidos pelo traçado ondulante das pans; uma terra habitada por
gente – são japoneses, isto sabemos – que o plano não designa ou demarca, apenas
espreita e faz entrever, como o olho da criança que se esgueira por sobre/sob
o buraco da fechadura paterno. Perversão feérica: o tempo como intensificação
de um instante voraz, votado ao contraplano e à duração que sua sequência comporta,
puído internamente por seu próprio dinamismo de rarefação memorialista.
O ideograma é o invólucro sob o “casulo” do qual estas primeiras imagens vão se
incrustar.
Quando
traçado na água (aquarela), este se desalinha e se espraia: surgem formas mais
complexas de memória, mais imbricados e intricados atos de trabalho, e enfim rostos
se descortinam, no afã de “atentarem” à matéria trabalhada, refigurada no escopo
das mãos, intervenções pictóricas e “laborais” no espaço (se é que não constituem
uma única e mesma maneira de “trabalhar” a matéria do plano: o rastro da
tinta é um engaste que aprofunda e designa novos traçados para o material). Plano
médio, infinitesimalmente atento, destilando precisamente os pequenos blocos de
duração onde uma vida (de um indivíduo, de uma comunidade, de um passado por herdar
ou registrar, tão somente) expia suas estações: rememorar, trabalhar, colher,
fazer arte (artesanar, ou poiésis, se retomarmos a origem do sentido), dádiva
única, que se tece no espaço entre o gesto (a mão erguida para a câmera) e a significação
(as mediações do trabalho em comum, sua sistematicidade, a labuta metódica sob
o sol). Um percurso: das mãos à matéria auscultada, desviada,
infletida por estas (gerada por?). O trabalho das mãos é essencial à memória,
assim como o ideograma é essencial ao conceito-síntese que subentende: ambos são
suportes, substratos do fazer e do desfazer da matéria, suas refigurações/deformações/transfigurações.
No caso da memória, as mãos fundamentam o encadeamento repetitivo do hábito, do
tempo que se encasula sobre si mesmo, sem o qual não há uma percepção da cultura
como uma totalidade significativa, idêntica a si mesma, mais ou menos equivalente,
ao longo da duração. No ideograma, esta “identidade” de uma cultura marcada (e
demarcada) pelos seus hábitos e ritos se cristaliza, se abstrai: ícone.
Esta
atenção de Sumi ao laborar – e ao rememorar que ele possibilita, e que
inscreve (literalmente) uma cultura, nos templos e nos objetos de um povo, ao
fazer e desfazer ao longo do tempo, evidenciado pelo trabalho humano em
comum, aqui se apresenta sob o prisma do quietismo. O quietismo: atenção e tensão
extremas do olhar para com a sedimentação do tempo, operada nas ações minúsculas,
cotidianas, intersticiais, transitivas. Das ações, que, vistas sob este olhar
(quietista), não servem para nada. A não ser para tornar presente (e epidermicamente
visível, em planos que nos roçam com sua fugaz taciturnidade) a sinuosa carícia
do tempo, este demiurgo (o demiurgo grego, ao contrário do Deus judaico,
não cria a matéria: ele dá-lhe uma forma, é o seu encenador), de formas
e de povos, que se deixa facilmente esquecer quando o trabalho assalariado é privilegiado,
em detrimento do trabalho como confecção/elocução de mundo, como é o caso
aqui. A mão, o olho, o trabalho: mesmas e únicas formas (Gestalt) de dar volume
e figura à invisibilidade “dadivosa” do tempo, matéria primeira e última de todo
sentido. Janeiro de 2010
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