Super 8, de J. J. Abrams (EUA, 2011)
por Rafael Castanheiro Parrode

Super 8De onde viemos? Para onde vamos?

Egresso da televisão, J. J. Abrams, em suas primeiras incursões pelo cinema, focou-se basicamente em revivals de séries/franquias. Primeiramente com Missão Impossível, onde ele injetava um realismo até então inédito numa franquia em que o nonsense e o estilo imperavam, trazendo Ethan Hunt para um mundo dominado pelo realismo truculento dos filmes de Jason Bourne, universo completamente oposto ao dos filmes de De Palma e John Woo. Em seguida, foi a vez de atualizar Star Trek, série um tanto datada, mas que ainda guardava uma legião de fãs: Abrams redimensionou personagens, criando um filme ágil e moderno, reprocessando os principais elementos e mantendo a essência que fez tanto sucesso na série (televisiva e cinematográfica), em anos anteriores. Nesses dois primeiros filmes, Abrams unia sua experiência em TV com uma vontade ainda embrionária de se fazer e pensar cinema, ainda que excessivamente preso às limitações do formato televisivo. Em Super 8, ele finalmente assume o cinema como essência, como uma manifestação artística única e sublime de expressão criativa, livrando-se de seus resquícios televisivos, embora ainda buscando um revival - agora bem mais nostálgico e contundente - de um modelo de produção e de gênero, perdido nos escombros oitentistas do cinema.

Super 8Abrams agrega todas as marcas dos filmes caseiros em super 8, dos filmes familiares, até pequenas produções de gênero, realizadas na maior parte por crianças que descobriam ali pela primeira vez a paixão pelo cinema - foi assim que se formou boa parte dos cineastas de toda uma geração. A referência mais óbvia recai, é claro, sobre Steven Spielberg, produtor do filme e responsável por clássicos juvenis decisivos na história do cinema de entretenimento hollywoodiano, principalmente no final da década de 70 e início de 80, quando fazia filmes de terror baratos e despretensiosos para a TV (Encurralado, Something Evil e Savage). Entretanto, ele é apenas um elo entre Abrams e o cinema. Afinal, além de dirigir, Spielberg produziu um sem número de filmes de diversos amigos egressos dessa geração, e é sobre ela, no fim das contas, que trata Super-8. É um filme sobre uma era: um momento em que o cinema, ao mesmo tempo em que atingia o seu auge com o domínio da técnica e dos efeitos especiais, assistia a seu próprio declínio com o início da disseminação do VHS, das videolocadoras e da consequente desmistificação das salas de cinema.

Nesse caldeirão de referências, passamos por Robert Zemeckis, John Landis, Tobe Hooper, Rob Reiner, John Hughes, James Cameron, Richard Donner e John Carpenter. Mas, se existem realmente dois cineastas que influenciaram fortemente Abrams e seu Super 8, eles são George A. Romero e Joe Dante. Romero, o pai dos filmes de zumbi, um cineasta marginal e artesanal, que trabalhava o cinema como a mais valiosa das matérias primas, ferramenta para profundas reflexões políticas e sociais, disfarçadas de filmes B. Joe Dante, talvez o maior pensador da cultura popular norte-americana dessa geração, dono de filmes completamente devotos a ela, mas, ao mesmo tempo, repletos de ironia e sarcasmo refinadíssimos - um genuíno contrabandista do cinema, como definiria Martin Scorsese.

Super 8É interessante pensar no impacto dos anos 80 nessa geração de novos artistas que se estabelecem como talentos, dentro da indústria cultural norte-americana atual. Em Abrams, esse impacto se traduz na tentativa de resgatar o modus operandi dessa produção B da época. Também por isso, Romero é ponto nevrálgico de seu filme: os filmes de zumbi de Romero são produções baratas, mas apaixonadas e conscientes de si e do mundo - anteciparam a volta dos filmes-catástrofe, redefiniram o cinema de horror, o gore, a violência e influenciaram toda uma geração de cineastas que surgiu após seus filmes. Mestre das alegorias políticas e sociais, Romero - assim como Joe Dante - partia de um fato (histórico, político, social ou cultural) para construir suas metáforas sobre a sociedade contemporânea. O filme dentro do filme, em Super 8, também parte do registro acidental de um fato para a construção de uma alegoria sobre uma cidade e seus moradores, com suas reverberações políticas e sociais. Essa alegoria reflete muito bem o estatuto da imagem na pós-modernidade, onde o acesso às mais variadas formas de registros, dos mais diferentes formatos e mídias, amplia o seu alcance ao redor do mundo. A câmera se torna testemunha ocular onipresente das transformações por que passamos hoje. Abrams faz com Super 8 o que Romero fez em Diário dos Mortos: um belíssimo libelo sobre o cinema como registro de verdades invisíveis do mundo.

Super 8O diretor cria um híbrido de referências e gêneros, abrindo espaço, em sua narrativa, tanto para o mais vagabundo filme de zumbis, quanto para o mais sofisticado filme de ficção científica, sempre em busca de um fluxo de renovação, de reprocessamento de imagens - que, apesar de já devidamente estabelecidas dentro do imaginário popular, convocam o espectador a uma experiência intertemporal, de regressão e reinserção do cinema nesse imaginário cada vez mais carente de referências, de memória. O tom nostálgico revela certa aversão ao modelo mecanicista e robotizado produzido pelo cinema norte-americano, onde a concepção de cinema parece cada vez mais deturpada: não se vê hoje a paixão pelo "fazer cinema", o interesse pela mise en scène, pela decupagem; o cinema vive um período de desencanto. Resgatar esse modelo de produção dos anos 80 vai além da simples nostalgia, ou da referencialidade abjeta e vazia. Abrams quer, acima de tudo, resgatar o prazer de uma geração em fazer cinema, em contar histórias, em promover uma relação de engajamento profunda com o espectador.

Apesar de se assumir o tempo todo como filme vagabundo, produção B de mais puro entretenimento, Super 8 revela um processo cauteloso de reprocessamento do passado, de um certo reencantamento pela técnica. Nesse sentido, Abrams aproxima-se mais de um Apichatpong Weerasethakul, principalmente por colocar em xeque passado e presente dentro de uma unidade indissociável. Ambos parecem nos dizer que a memória, a tradição, a história estão incrustadas em nosso presente, e é impossível nos desvencilharmos dela. Ambos assumem, acima de tudo, a idéia primitiva do contador de histórias como essência de seus cinemas, com a câmera aprisionando para si uma história que apenas ela “viu”, e agora poderá contar a todos. É a hereditariedade do fluxo da história, das imagens. Abrams, assim como Apichatpong, recobra o prazer de narrar, de contar histórias via imagens. De relembrar velhas lendas, reconstruir mitos, mas, principalmente, de provocar um maravilhamento que o cinema de hoje, tão atrelado ao futuro, poucas vezes proporciona.

Setembro de 2011

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