Superman - O Retorno (Superman Returns),
de Bryan Singer (EUA, 2006)
por Felipe Bragança

O herói sem ação

Retomar um ícone cinematográfico e industrial como o Super-Homem, em um caldo cultural contemporâneo avesso a heroísmos cristalizados e ao ideal da potência-de-ação da cultura norte-americana, não é uma tarefa simples. Pois Bryan Singer, que confirma aqui uma inquestionável capacidade de entender o ritmo de linguagem e o universo específico das personagens de HQs de heróis não propõe uma retomada pura do heroísmo verdadeiro-e-justo dos filmes dos anos 70-80, mas uma narrativa de crise e inconstância, cuja chave está na premissa do desaparecimento do herói e de seu retorno a Terra (não à toa indicado entre 2001 e 2006: período em que um certo sentido de insegurança tomou conta dos noticiários e da cultura de massa pós-11/09).

Juntamente com os dois jovens roteiristas do filme, Singer costura sua narrativa e sua atmosfera mítica não no sentido de uma retomada da ordem pela chegada da ferramenta de intervenção mais justa (medo que este escriba teve assistindo alguns dos trailers na internet...), mas no choque entre a potência individual de Kal-El e sua incapacidade de ser um salvador absoluto. Precisa-se ou não de um salvador? Mais do que isso: deseja-se, ou não se deseja, um salvador? A resposta procurada pelo filme não é nem de uma negativa politicamente correta nem de uma retórica do intervencionismo meritoso, mas um diálogo entre o que há de poder quantitativo nas ações humanas, e o que há de possibilidade qualitativa dos efeitos. “O poder” (ou “os poderes”) do herói, no filme de Singer, não resolvem a questão por si só. Não são suficientes, nem unilaterais, nem intocáveis.

O que se encontra ao longo da projeção é uma narrativa focada em um personagem-mito dividido entre a sua liberdade absoluta (o prazer de voar, sumir, roubar a mulher que ele ama com um peteleco) e o universo que o cerca – coberto de detalhes, delicadezas, sutilezas de sentimentos, caos diversos, catástrofes particulares e coletivas... Do mais microscópico ao mais macro, dos planos detalhes dos olhos de Lois Lane aos planos gerais de um planeta multiplicado em vozes que não se sintetizam, o olhar do filme é sobre a figura mítica do “I can do it” norte-americano, na figura de um homem que tudo pode, mas que não pode tudo.

A solidão, a falta de referências culturais, a sensação de que poderia estar em todos os lugares ao mesmo tempo e em nenhum, a imersão no excesso e no detalhe, o ideal romântico carregado como lembrança de um passado perdido, são elementos de construção de um sentimento ao mesmo tempo oceânico e de ruptura que é do herói, mas também do homem “comum”.

O super-homem de Singer é o encontro patético (e em cores berrantes) entre o excesso de possibilidades de ação e a luta para a organização, a afetividade e harmonia dos gestos.  Em contraponto à sua orfandade e desterro mítico, Lex Luthor aparece como o bufão festivo, que deseja a reconstrução do planeta perdido de Kal-El, sonhando ser dono de um continente inteiro. Entre a involuntária onipotência do herói (“ele está voando mais rápido que a luz, estava no Mali há 5 minutos...”) e a maquiavélica prepotência do vilão (“um novo continente só para mim”) o filme consegue não resolver de maneira simplista a equação que aproxima e repele os desejos e os dilemas dos dois arqui-inimigos.

Como primeiro filme de uma provável série de três, Superman - o retorno se esforça em reestabelecer junto ao público mais jovem os agentes da narrativa e renovar a iconografia do heroísmo com as fissuras de um olhar mais desconfiado. Ao contrário da ideologia do dever e do sacrifício vigente nos dois recentes filmes do Homem-Aranha, o que se vê neste filme é a imagem de um indivíduo em excessivo afeto, e completa imersão naquilo que o cerca – incapaz de saber por onde começar a agir, mas nem por isso paralisado.

Um herói que não mais carrega ao final a bandeira dos EUA, que não bate continência ao presidente (ou que apenas cumpre chamados da polícia), mas que sofre e age justamente por sua falta de identidade segura, por sua liberdade excessiva, por seu vôo sem dono, por seu certo mal-estar. “I’1l be always around”, repete o herói. Frase mítica e quase religiosa, esse bordão reitera o jogo aberto que Singer faz entre a figura de Jesus Cristo (órfão que vem a Terra salvar os humanos, que morre e renasce com seu corpo desaparecido) e do alienígena voador e uniformizado. A diferença entre o mito cristão e esse salvador pop e apaixonado, está na incapacidade de que uma ação isolada do herói voador construa em completude o que é certo e o que é errado para os olhos cotidianos – porque não há sacrifício, há vontade de ação.

Super-Homem não é Clark Kent disfarçado, é o inverso: o homem comum, pacato, desinteressado e bem-empregado, é que é a imagem fantasiosa do herói sem lugar fixo, sem terra, que está em todos os cantos. Não há moral definitiva e exata a ser demonstrada, mas a manutenção de um ideal de bem-estar de difícil localização ou definição. As TVs, os jornais, a mídia toda celebra e fatura dinheiro em torno do herói-celebridade, ditando o que ele pode fazer de bom e o que deve evitar de ruim – como na cena em que leva Kitty ao hospital, claramente induzido pelo “público” que o cerca e espera que ele faça. Um mesmo herói que (escondido de todos) fala a seu recém-descoberto filho as palavras declamadas de um mito, mas, também (num rebaixamento sutil), as palavras de um homem “comum” diante de um filho “comum”. Como também é “comum” a coragem de Richard e de seu aeroplano, quando salvam o herói do afogamento...

Com um elenco bem sintonizado, algumas surpresas e sutilezas de trama, um novo protagonista (inexperiente, mas inteligente na sua aproximação da figura cristalizada de Christopher Reeve), uma decupagem segura e consciente de climas e referências de HQs, e ainda alguma graça poética (nos tempos dos sobrevôos, na aceleração do vento e dos gestos do herói), Singer consegue dar um passo curto mas promissor em direção ao que de melhor se fez nos quadrinhos do homem-de-aço durante os anos 90 e começo dos 00 – em especial nas graphic novels. Dando um ar de lirismo de aventura a um ícone muitas vezes cerceado (pelo lugar-comum) para a ação “justa” e para o moralismo pragmático.

Como agora é de praxe nas superproduções norte-americanas, fica a expectativa de que, cimentada esta rota, Singer venha para o próximo filme da grife com a mão ainda mais livre e as tintas mais arriscadas, na dissecação crítica do herói e da ação explosiva no cinema de aventura. Tem cacife para isso, um ícone pop imortal nas mãos – e um bom começo neste primeiro filme.


editoria@revistacinetica.com.br


« Volta