ensaios
Nada é sagrado
Superoutro, o libelo seminal de Edgard Navarro
por Juliano Gomes
Um
dos procedimentos mais freqüentes na obra de Edgard Navarro
é o do trocadilho. Seja nos títulos de seus trabalhos,
seja nos textos falados nos filmes, ele está lá,
como uma espécie de metáfora, como símbolo
de uma operação artística que emana diretamente
da prática cotidiana e que, desta maneira, marca uma posição
de ataque constante na obra de Navarro. O trocadilho é
esse golpe, que coloca o signo em evidência pelo deslocamento,
pela distorção, e ao mesmo tempo cria um ambiente
complexo, onde forças conflitantes atuam (ser super outro
é não ser, mas com grande intensidade) sem se anular,
só se amplificando. E essa habilidade em criar grandiosos
nós é a força-motriz desse cinema que tem
aqui em Superoutro um dos seus pontos mais exuberantes.
O que se faz, no caso do título de Superoutro, é
associar ideias pelo som, e onde se pode ter ao mesmo tempo duas
palavras, juntas e separadas: super outro (um paradoxo) e super
oito (a bitola que marca profundamente o cinema deste grupo e
deste período, os anos 80, no Brasil). Com uma simples
operação de linguagem, um chiste, configura-se uma
síntese absolutamente complexa, marcando essa jornada hilária
e conceitual, que é com certeza uma pedra fundamental para
a compreensão de o que é, de o que foi - e, muito
importante, de o que não foi o cinema no Brasil.
O personagem-título é uma espécie
de Messias às avessas (ou não), que vem de lugar
nenhum – vem da noite – e já se anuncia: “Acorda
, humanidade!”. A missão é clara e já
está dada nos primeiros momentos, e é justamente
isso que ele veio fazer: inverter tudo, quebrar as portas, tornar
tudo “outro”. Porém, ser “outro”
é sempre um caminho relativo a esse oposto. Isto é:
cada coisa tem seu outro, seu negativo; portanto, é preciso
fazer esse trabalho paulatinamente - ir de espaço em espaço,
instituição em instituição, e destruir
tudo. E, muito importante: em nome de nada. A odisséia
deste adorável cristo precisa ser sem finalidade.
Não
por acaso, no embate entre o misticismo religioso e o misticismo
político ideológico, o protagonista (numa interpretação
épica de Bertrand Duarte) se localiza mais próximo
do primeiro, porém sem abraçá-lo totalmente
(ele não pode fazer isso com nada, esse é o contrário
de sua missão: a afirmação). Há entre
eles o elo da crença mas, se há esta maior aproximação,
ela se dá pela valoração do ato em si, ou
para o em si do ato, isto é, sua ritualização.
O que os une é mais o valor do canto do que o sentido das
palavras. É preciso ser poesia, e essa é a linha
que o Superoutro (o chamemos assim afinal, necessariamente o traindo)
traça através do Hino Nacional, da Bíblia,
Gregório de Mattos, ou A Idade da Terra. Seu tempo
é o da recitação; é épico,
e portanto, sem meta, sem fim - sua natureza é a da modulação.
A essência do embate aqui é a da
introdução do outro de cada coisa. O trajeto incendiário
deste homem não é de o de deixar o rei nu, de desmascarar
as aparências, mostrar o segredo que todos querem esconder
e que residia ali, recalcado; sua função é
abrir as portas desse buraco negro ao contrário, que é
o não-dito de cada coisa, e que poderia muito bem ser a
coisa. Isto é: tudo é arbitrário, tudo precisou
ser inventado e acreditado: “tudo o que eu vejo existe”,
ele diz. Para seguir este caminho com a radicalidade necessária,
é preciso então ser louco, mendigo, suicida; é
preciso não ter lugar, não ter nada pra chamar de
seu (não por acaso o filme precisa da total dissolução
das poucas posses que ele parecia antes ter). É preciso
não pertencer à sociedade, à sanidade, à
normalidade e, enfim, à vida. Mas seu transbordamento,
seu espalhamento de merda, não é um não,
mas, justamente como no trocadilho, um sim e um não.
Esse e não é uma figura da boa convivência
dos opostos, mas do fracasso das duas pontas. Ele é a presença
absoluta do fracasso: está desde sempre fadado, vai morrer
(mais de uma vez), vai apanhar, ser despejado, não vai
ter mulher, nem voar vai (pelo menos de uma das maneiras). Seu
compromisso é alargar o campo do que é possível,
é dizer: “por que não pode ser assim”
(com e sem interrogação), mas sem ocupar nenhum
dos lados.
A
heterogeneidade do filme se alimenta de tudo, se torna tudo. Um
exemplo claro é sua apropriação dos dizeres
publicitários: o filme os assume, não os desmente,
mas os reafirma desafirmando. Ele vai voar, de alguma maneira,
mas não do jeito que publicidade quer, como aquele “voar”
foi pensado para o outdoor; aí é feita essa operação
de destruição que libera esse não-dito das
coisas, nessa dupla operação de destruir tudo mantendo
tudo de pé, circulando pela cidade (o interno não
é uma questão aqui, nunca) até, ao final
da sua jornada, tornar-se ela. A sua tão pretendida trepada
– sua fusão, enfim – é com a cidade.
A transcendência que vai atravessar os filmes de Navarro
ganha aqui uma imagem muito direta. Sua morte, que é afinal
uma duplicação, a consumação desse
desejo de ser duas coisas, vai permitir sua mistura, por meio
do vôo, com o espaço da cidade – que é,
afinal, o seu outro, é a matéria de sua paixão,
seu martírio e seu gozo.
Este libelo político cunhado por Edgard
Navarro mantém sua força intacta pela firmeza com
que afirma sua moleza e inconsistência necessárias.
A via crúcis de Bertrand/Navarro se nutre desse lugar cambaleante,
trôpego: nem na margem, nem no centro, nem Fellini, nem
Tropicália,
para poder se infiltrar em tudo, para poder ser tudo, e afinal
ser nada; ser uma espécie de grande absoluto, poroso, uma
imagem vazia, oca, um espelho inverso que despedaça qualquer
partícula de ordem, sentido, ou controle. Nada o seqüestra,
nem mesmo a morte.A cada bifurcação no caminho,
cava–se um buraco na terra ou no céu; essa é
sua política. Seu lugar é necessariamente a rua,
pois sua jornada é em torno do comum, do dividual; seu
esforço é fazer existir esse lugar que é
criado no ato, que estava vivo em potência. Este é
o papel dos loucos, mendigos, suicidas: é ser a afirmação
violenta de o que podemos ser, essa diferença que é
afinal uma semelhança radical e incômoda, essa diferença
umbilical que nos liga a tudo o que não somos. E Superoutro
é justamente a suprema odisséia gargalhada desse
intolerável que nos acompanha inevitavelmente, dessa sombra
hilária e triste que toda tentativa de estabilidade precisa
suprimir, para poder fincar os pés. Por isso, as portas,
grades, e as caras, fechadas.
Maio de 2012
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