in loco - cobertura do Festival do Rio
Surpresas no script
por Eduardo Valente
As Leis de Família (Derecho de familia), de
Daniel Burman (Argentina/Itália/França/Espanha, 2006)
- Première Latina
A Estrela que Não É (La stella che non c'é),
de Gianni Amelio (Itália, 2006) - Panorama
Olhe para os Dois Lados (Look Both Ways), de Sarah
Watt (Austrália, 2005) - Panorama
Festivais de cinema são momentos incrivelmente felizes para os críticos
de cinema? Sem dúvida: é a chance de se reencontrar o cinema de
uma série de diretores favoritos, de ver filmes absolutamente inéditos
e que possivelmente não se poderá ver de novo nos cinemas, é hora
de encontrar vários amigos que dividem a mesma paixão entre corridas
de sala para sala... Mas, também não é só isso. Um festival de cinema
também testa, diariamente, a tolerância do crítico. Tolerância física,
inclusive (há os que possuem outros trabalhos, e precisam fazer
jornada tripla entre o emprego, os filmes e a escrita, por exemplo),
onde a briga com o cansaço na sala escura de um cinema pode ser
especialmente cruel (com alguma experiência hoje em festivais, posso
afirmar que o cochilo, mesmo que rápido, está longe de ser a exceção
na experiência crítica dos dias de festival).
Mas, mais dramática do que a tolerância física
pode ser a situação da tolerância cinematográfica mesmo. Muitas
vezes a paciência vai sendo perdida com o excesso de filmes vistos
em pouco tempo – na maioria, exemplares não especialmente felizes
de cinema. O maior desafio para o crítico é manter o frescor dos
olhos, a capacidade de se encantar no meio disso tudo. E a sua
maior qualidade será justamente saber admitir que um eventual
desencanto pode se dever em muito a este seu “estado especial”.
Não que não haja autênticas bombas e decepções, e nestes casos
se deve dar espaço total a esta resposta. Mas, me refiro mesmo
a saber perceber que muitas vezes o estado físico-mental pode
aumentar as proporções dos desastres (e até mesmo dos favoritos).
Nesta terça, tive um dia curiosamente de altos
e baixos inesperados nos cinemas do Festival do Rio. Comecei o
dia (de fato, a noite, já que passei o dia trabalhando na edição
da revista) com um filme que encaixei na programação de última
hora: Leis de Família, do argentino Daniel Burman. Não
sou um particularmente um fã de Abraço Partido, seu filme
de considerável sucesso no circuitinho brasileiro (e internacional),
e muito menos ainda do anterior Esperando o Messias – na
melhor das hipóteses acho os dois filmes simpáticos. Mas, resolvi
dar mais esta chance ao cineasta de me encantar, e foi exatamente
o que aconteceu.
Para
além de motivos absolutamente pessoais (o personagem de Daniel
Hendler divide mais do que uma característica pessoal comigo),
o fato é que impressiona no filme a capacidade de filmar um cotidiano
absolutamente comum de um grupo de personagens sem abrir mão da
ficção (ou seja, construindo estes personagens como tais, sem
excessos de “observacionismo”), e sem precisar chamar a atenção
para sua linguagem (defeito maior de Abraço Partido, para
mim, que me cansava com aquela câmera na mão auto-centrada), sem
com isso deixar de ser rigoroso. Junte-se a isso um desempenho
estupendo do elenco (Hendler, em especial, mas o filho também
merece destaque), e uma coleção de frases memoráveis, e posso
dizer que dei gargalhadas no cinema como não acontecia há algum
tempo. Burman encontra seu melhor cinema numa aproximação com
a realidade que é mais do que simples cópia desta, mas que consegue
um nível de identificação absurdo com o espectador.
Na seqüência, viria o novo filme do italiano Gianni
Amelio – esse sim um dos que eu tinha programado desde cedo, porque
é um cineasta que, sem estar entre os meus favoritos, me chama
a atenção desde Assim é que se Ria (Portas Abertas
e Lamérica, só vi mais tarde). No entanto, no ano passado
tive sérias dificuldades com o seu As Chaves da Casa, que
abandonei no meio depois de duas tentativas, incomodado com a
absurda previsibilidade da história e da aproximação visual que
eu presenciava. Mas, como o tema deste A Estrela que Não É
(a perambulação pelo espaço desconhecido, o contato com o diferente)
me interessa em especial, e ainda tem no elenco um de meus atores
favoritos no mundo (Sergio Castellito), fiz questão de reservar
logo o ingresso.
No entanto, de novo, fui obrigado a deixar Amelio
pela metade. Acho o começo do filme completamente equivocado,
com uma filmagem pretensamente significativa do personagem de
Castellito (que lembra, em sua presença nas sombras e entrada
nos ambientes, o personagem que viveu em A Hora da Religião
– só que os filmes não têm nada em comum para haver esta semelhança),
mas que na verdade é de uma pressa esquisita em colocar o personagem
“na estrada”, sem que nem ele nem a chinesa tenham nos despertado
qualquer interesse. Quando ele chega na China, imagens absolutamente
clichês do ocidental perdido em terra estranha se sucediam, até
que comecei a perder a paciência com o velho desfocado ao atravessar
uma rua no meio de orientais. Depois, ele volta a encontrar a
mulher (num encontro despropositado e mal resolvido), e a partir
de então partem numa jornada de “auto-desvelamento” de mão dupla
completamente desinteressante. Nada ali naquela tela, depois de
uma hora de filme, atraía minha atenção: nem personagens, nem
paisagem, nem forma de filmar uns na outra. Resultado: resolvi
descansar um pouco os olhos, e guardar forças para a sessão final
do dia.
Encontrei o colega Daniel Schenker no Espaço Unibanco
para uma sessão incrivelmente vazia (dez pessoas na sala). Avisei
a ele a situação aparentemente sui generis, mas de fato
bem conhecida nossa: veria o filme por meia hora. Se me interessasse,
ficava até o final. Se não, saía para a sala ao lado, onde um
outro filme de interesse regular começava em trinta minutos. Parece
uma gincana, e uma injusta cobrança do filme (“interesse-me em
trinta minutos, senão...”), mas na verdade é algo bastante necessário
quando há poucas exibições de uma série de filmes sem maior informação
anterior sobre suas qualidades e/ou relevância.
Curiosamente,
especialmente se penso no que acabara de acontecer com o filme
de Amelio, o australiano Olhe para os Dois Lados me manteve
na sala até o final (perdendo assim, a chance de conferir Luc
Besson). Digo curiosamente, porque de fato o filme está longe
de ser especialmente diferenciado. No entanto, na sua reciclagem
de uma série de situações e ferramentas já mais do que batidas,
especialmente no cinema americano independente, havia algo de
simpático naquele filme que passava na tela, em especial na entrega
de sua diretora a seus personagens-atores, que me lembrou bastante
o recente Eu, Você e Todos Nós (filme que tem detratores
violentos, mas de que eu gosto imensamente). Uma mesma melancolia
desavergonhada e pop, ainda que aqui menos bem dosada (há
pelo menos uns dois “clipes” musicais a mais do que o suportável).
No seu cruzamento de narrativas a partir de um acidente, também
seria fácil rever o cinema de Arriaga-Iñarritu, mas há que se
notar tanto o cuidado dramatúrgico de colocar o acaso como tema
e não como imposição, e também a ausência de um fatalismo sádico
na relação dos seres humanos.
Em suma: um filme a priori muito menos
ambicioso ou mesmo encorajador do que o de Amélio (e talvez até
por isso), manteve-me na sala para além do cansaço, enquanto aquele
outro não conseguiu. E o dia ainda chegou ao final com um novo
fã de Daniel Burman e Daniel Hendler. Ou seja: nada do que se
poderia esperar do script pensado ontem. Que é, em parte,
o que nos fascina na rotina dos festivais.
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