in loco - cobertura do É Tudo Verdade
Nascimento/Mãe (Tarachime), de Naomi
Kawase (Japão/França, 2006) por Lila
Foster Auto-retrato
no feminino Qualquer pessoa que se dispõe a
fazer um vídeo-diário se coloca um limite muito tênue entre o que existe de interesse
para si ao revelar sua intimidade e seus traumas mais profundos e o que a sua
própria experiência possa revelar para o outro. Operando o tempo todo nesse limite,
Naomi Kawase faz em Tarachime um uso muito peculiar e especial da câmera
extrapolando o sentindo do registro e suas possibilidades de expressão. O filme
tem duas cenas chave – uma discussão entre mãe e filha e o registro do nascimento
do filho de Kawase – que exemplificam perfeitamente as possibilidades abertas
pelas câmeras “pessoais” e como o registro audiovisual se cola à vida de forma
cada vez mais intensa. O início, com imagens em close do
corpo nu da sua avó já muito velha superpondo-se a uma conversa em off
entre a realizadora e a senhora sobre a infância de Naomi (ela fora criada pela
avó e nunca conheceu a mãe), é, além de muito bonito, corajoso. De forma extremamente
abrupta entramos no terreno do trauma, numa cena em que vemos somente o semblante
da avó Uno e suas reações diante das falas violentas e insistentes de Kawase,
que a interroga sobre sua negligência ao criá-la e sua falta de tato ao lidar
com as questões vividas pela neta. Uno aos poucos vai ficando sem reação diante
da agressividade da neta-filha munida da câmera e a cena culmina no seu choro
e intensos pedidos de desculpa. Para o espectador, fica a sensação de que a cena
dura mais do que deveria como se estivesse se rompendo ali uma postura ética que
prevê a proteção de certas imagens – nesse caso a da dor, pela exposição do sofrimento
daquela mulher de 90 anos que soa como se fosse quase uma profanação. As cenas
que se seguem são de extrema ternura, e formam o caminho de cura e reconciliação
através de um olhar em retrospecto diante da iminente morte da avó e as imagens
do seu filho ainda bebê..e reconciliaç a fazer um vídeo a mrada em vma maldade.o ali uma certa postura
avusos do aparelho A segunda cena que re-significa
o primeiro desconforto é a do parto, situação que já tem um forte impacto em si.
Embora já vista em outros filmes (como Romance, de Catherine Breillat),
a imagem do parto também faz parte do rol de imagens interditas que sempre causam
um desconforto – não necessariamente no sentido do mau gosto, mas por habitarem
a zona limite descrita acima. O mais impactante, no caso de Tarachime,
é que a diretora pede a câmera e grava de uma perspectiva nunca vista o momento
em que seu filho deixa de ser “parte dela” (o corte do cordão umbilical) – e,
porque não, o seu próprio nascimento como mãe. Este plano “inédito” demonstra,
antes de tudo, a intensidade cada vez maior do registro pessoal feito com uma
câmera que pode estar ligada à quase todo momento e pode ser levada para qualquer
lugar, captando momentos cada vez mais precisos e preciosos. O que essa captação
traz de estético e plástico – planos próximos, imagens em lugares com pouca luz,
planos tremidos, o som da respiração – também intensifica esta proximidade. A
atitude de Naomi Kawase, de tomar para si a produção da imagem naquele momento
revela a magnitude que a imagem assume hoje, na auto-reflexividade e na constituição
do espaço da intimidade. Filmar é necessário, acima de tudo, para viver e “dar
vida”. A possibilidade de rever a vida, aqui no seu sentido literal (olhar novamente)
e no sentido mais abstrato (rever os processos emocionais), assume um estatuto
formal, pois a montagem e a narração dão um novo sentido para as imagens e para
a vida da diretora em meio à intensidade da morte e do nascimento. Este mergulho
intenso no universo feminino, realizado de forma extremamente poética e visceral,
só nos deixa um leve vazio por não termos tido, ainda, a oportunidade de ver no
Brasil a filmografia completa de Naomi Kawase no cinema.
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