Ted, de Seth MacFarlane (EUA, 2012)
por Fabian Cantieri

Estruturas quebrantáveis

“Vivemos uma geração meio mariquinha, todo mundo diz:
Vamos lidar psicologicamente com isso?’
Naquela época, você simplesmente sentava o pau e resolvia na porrada.”
Clint Eastwood

Era de se esperar que o primeiro filme de Seth MacFarlane, autor de Family Guy (e “marketeado” mundo afora assim), saísse de voadora nos costumes da família tradicional americana. Mas isso é fichinha, convenção-sinopse de catálogo de revista de TV por assinatura... “so 90’s”. Ted vai mais longe: enxerga, com uma clareza rara, o salto paradigmático que a sociedade americana não consegue dar como líder patriarcal de um mundo em crise. O problema que se instaura logo de início: John (Mark Wahlberg), encucado com a namorada querer ouvir uma proposta de casamento no aniversário de quatro anos de namoro, pergunta a seu melhor amigo Ted se ele acha que deve corresponder à expectativa. Ted já o ensina de cara: “Não, é o momento errado. É uma ideia terrível. Você tem a economia, a bolha do crédito, a corte suprema... veja o Haiti”.

O matrimônio, e sua impotência e inutilidade, a esta altura se enraíza como pilar estrutural – do filme e da América – de uma falência inevitável e irreversível das instituições americanas pós-11 de setembro. Isso não é só um fio de um país que tem um presidente negro como questão e polêmicas homofóbicas latentes, mas a base de organização endêmica que influencia no próprio fluxo capitalista. E o que a fábula do ursinho parece nos gritar é de que precisamos repensar, antes de tudo, o conceito de comunidade, reestruturá-lo conforme nosso tempo pede. A liberdade é encarcerada por empregos medíocres e infrutíferos (o nome da empresa Liberty como axioma); a letargia oitentista junto à maconha apaziguadora é repreendida pelos relacionamentos; estes relacionamentos nos pressionam a uma escalada incessante a lugar nenhum, onde a promoção, um novo-lugar-nenhum pouco mais qualificado, é uma questão de tempo - no caso, um mês. Como diria o chefe de John, “é só não fazer merda” ou, como mostrará Ted mais adiante, é só fazê-la destemidamente.

O trabalho é usado como desculpa para postergar o casamento, mas logo depois, no parque, quando Ted ri de sua situação de pós-celebridade vivendo de salário mínimo, John retruca que dá para ser feliz com um “trabalho merda” – ele sabe bem disso e se diz feliz assim. Dá pra ser, mas volta-se ao ciclo da pressão de Lori (Mila Kunis). E Ted, mais tarde, na cena antológica da porrada com John (inebriante muito pelo enaltecimento do desenho sonoro), mostra que, na verdade, por mais que as coisas pareçam vir de fora, o mundo não conspira ao nosso crescimento espiritual. Ted não é mais uma referência de uma âncora oitentista (como Flash Gordon, Cheers, Octopussy, Indiana Jones, E.T., Alf... a lista é grande), é apenas “a porra de um urso” que estava com ele ali, sempre ao seu lado, ajudando-o em suas decisões apesar de nenhum dos dois saberem o caminho a seguir.

Quem tem autonomia sobre os fatos é só aquele que tem coragem de combatê-los de frente. A porrada é natural da vida, apregoava e ensinava John Ford em tantas cenas belíssimas e hilárias de brigas entre bêbados e sóbrios, militares e civis, inimigos ou amigos – o importante é o desenraizamento seguinte, o seguir em frente (e quanto a isso, nos anos 1980, tínhamos praticamente um campo de cegos assumidos). Reconhecer a queda e não desanimar. Levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima (de ursinho na mão, que seja), mostrando quem é. Taí uma lição irônica, apalavrada pela cultura, mas que parece urgente para os tempos de afeto e sensibilidade à flor da pele de hoje, vindo de um urso que supostamente deveria ser fofo (lembramos daqueles carinhosos) e que se revolta justamente quando é comparado a um Teddy Ruxpin qualquer. Em tempos de crise, é preciso deixar o lamento de lado, assumir o suor de correr atrás e, se tiver que comprar a briga, será a única compra que o valor aumenta por omissão.

E é o que acontece quando Ted é seqüestrado. Ali temos, por um lado. John, isolado até dos judeus (vale lembrar que é a religião de MacFarlane), que cultivou um pacto de amizade com um ursinho vivo, típico brinquedo da época (lembremos de novo de Ruxpin) com um “algo a mais” e aprendeu com ele a passar pelas porradas da infância e adolescência sem jamais abandoná-lo por estar maduro o suficiente (isso existe?); e, por outro lado, temos a geração MTV, enfurnada numa psicopatia stalker de BBB (lembremos da parede repleta de fotos de todas as épocas de Ted, e que John e Donny, personagem de Giovanni Ribisi, são da mesma geração), que nunca soube lidar com um “não” na vida e toma isso como questão primordial para educação de seu filho – “nunca, nunca, nunca dizer não”.

É sintomático que Donny queira roubar Ted para o filho, enquanto fica vendo TV dançando feito autista – ele, seu milk-shake e Tiffany. Para ele, nem mais importa... importa que o filho receba o afago. Não seria exagero lembrar de Elefante e sua geração que se isola no micro-cosmo da internet, que promete um alcance de quase qualquer coisa e qualquer um à altura das mãos. O homem que não agüenta palavrões depois de sua oferenda ao filho nem mais quer saber de Ted (até ele tentar escapar), e o filho nem ao certo sabe o que (qual brincadeira) fazer com ele. Não à toa, ao fim do filme, ele vira lobisomem (Taylor Lautner na saga Crepúsculo), como no mito escrito por Ovídio em Metamorfoses, no qual um rei incrédulo recebe Zeus em sua casa, corta a garganta de um prisioneiro e oferta sua carne ao Deus. Só que, em Ted, quem se ferra é o filho do rei.

Dentre mitos, o rasgo, a morte já nos antecipa o fim. A fábula que, ao começar, parece similar à de um conto de fadas (a enunciação e melopéia do narrador corroboram bastante para isso), parodiando a história de Jesus, ao fim, acaba revelando a mesma narrativa de Cristo, com direito ao mesmo epílogo de morte, milagres e renascimento (não à toa, o urso demiurgo é dublado pelo diretor). Só que, agora, a encarnação divina sem carne e sem matéria não mais se sacrifica pela humanidade, e sim por uma simples relação: aquela que poderia ser mais uma. É uma relação no mínimo estranha, na qual um dos pares é o antagonista da estória (para não dizer um segundo vilão) - Lori incorpora o papel de mulher geração-2000 que pode tudo, inclusive abrir mão de qualquer concessão; e Ted, antes de um estorvo, é um amigo, o único a assumir responsabilidades pelos seus atos, mesmo “não precisando”, por ser uma “porra de um urso”. É uma relação que só alcança o casamento “como era antes” através de um milagre (isso já não é mais possível de outra maneira), e até mesmo esse casamento não deixa de estar inserido como piada. Não se levar a sério é a mais sábia maneira de remodelar convenções anarquicamente historicizantes, por ser um processo que retoma o devir do inabalável. Essa doutrina de oxímoros é a masterclass de Ted (sempre bom lembrar a redundância – uma comédia com excelentes piadas). Talvez com uma esperança monumental de que essa nova relação trans-hedonística ensine algo a essa futura humanidade, sem o misticismo vertical cristão ou grego, mas se desdobrando de um ao outro, horizontalmente, pessoa a pessoa.

Outubro de 2012

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