As
Testemunhas (Les Temoins), de André Techiné (França, 2006)
por Francis Vogner dos Reis Testemunho
como cumplicidade
O título do filme de André Techiné
problematiza exatamente algo recorrente em sua obra: testemunhar é “ver” e continuar
impassível? Ou o ato de ver já é um tipo de comprometimento? Essas indagações
são menos voltadas a uma questão do olhar em si, como nos filmes de Brian DePalma,
e mais ao ato de ver como condição que vai exigir uma tomada de postura da parte
dos personagens. Em As Testemunhas, os “testemunhos” não farão de seus
personagens espectadores descomprometidos, mas cúmplices de uma experiência dolorosa
e crucial para a compreensão dos valores e de alguns dos fantasmas do mundo atual:
a descoberta da Aids. Não é de hoje que André Techiné chama
seus personagens à responsabilidade. Para o diretor, quem “testemunha” naturalmente
adquire responsabilidade pelo que vê. Perante determinada situação, o personagem
não deve (e não consegue) ficar impassível. Foi assim em filmes como Os Ladrões,
Rosas Selvagens e Anjo da Guerra, mesmo sendo trabalhos de abordagem
e de direcionamento diferentes entre si. Não existe o distanciamento dos personagens
em observar a vida e o processo histórico a uma distância segura (como fazem alguns
cineastas “políticos”, tais como Costa Gravas e Pontecorvo) ou cínica (como Denys
Arcand por exemplo), mas a dor de experimentar a contradição entre a irrefreabilidade
do desejo e os limites impostos pelo contexto em que se encontram. Em As Testemunhas,
Techiné cria uma rede de relações que envolverá de modo muito estreito seus integrantes.
Todos eles terão mais ou menos vínculos sólidos ou estremecidos com a responsabilidade
pelo “outro”. Se a frase de Saint-Exupery “és responsável por aquele que cativas”
é usualmente bandeira arbitrária e melodramática para justificar vínculos de dependência
nas relações, Techiné a ressignificará com admirável altruísmo. A
começar, temos a romancista Sarah, que acredita não ter privacidade o bastante
para poder criar uma ficção, pois a vida não lhe dá descanso: tem uma criança
recém-nascida e um marido policial, o argelino Mehdi, que se ocupa obsessivamente
de seu trabalho e consegue dar mais atenção ao filho do que ela. Já o médico Adrien
se apaixona pelo jovem Manu, que não corresponde sua paixão, apesar de este também
ser homossexual e devotado a uma prática livre do sexo. Entre todos eles, é Manu
quem menos exige a presença e o compromisso de quem gosta: solto na vida, instintivo,
longe de quaisquer dependências, ele só quer dos outros o que crê que podem lhe
dar – de sua irmã, companheirismo; de Adrien, amizade; e de Mehdi, uma relação
de amante. Como outros personagens que fascinam o diretor, há uma certa inocência
em Manu que se traduz na esfera sexual – não só do ato de maneira específica,
mas em toda uma postura, uma maneira de ser. Manu parece sempre estar à vontade
em atitudes que aspiram liberdade, do sexo a nadar em um lago. Se
em Anjo da Guerra, o que de antemão já frustrava certa “inocência original”
que afirmava a autenticidade do garoto que fugiu de reformatório era a guerra,
a ocupação alemã instaurava uma crise e a impossibilidade de um paraíso idílico.
Em As Testemunhas é a própria Aids que vai ser o preço da liberdade de
Manu – e de quebra, assombrará outros personagens como o casal formado por Mehdi
e Sarah. É como se a natureza, tão íntima de Manu, fosse moralista. O retiro de
Manu em razão da doença fará com que Adrien e Mehdi busquem colocá-lo sob cuidados,
mesmo à sua revelia. Mais tarde Sarah escreverá em seu livro que todos (à exceção
de Manu) foram testemunhas desse tempo. É nessa compreensão que reside a ética
histórica do cinema de Techiné, e desse filme em particular: não há isenção para
a testemunha porque ela faz parte da história, sua única sorte é sobreviver para
contá-la. Apesar da beleza inegável de As Testemunhas,
é justo dizer que a intensidade com que o diretor leva o filme faz com que em
sua segunda parte (o inverno), os fortes momentos dramáticos acabem sendo o objetivo
central, em detrimento de certa fluidez que arejou a narrativa em sua primeira
parte e conseguiu burilar uma sólida dramaturgia e um despojamento cênico requintado,
típico de Techiné. Mesmo com esse desequilíbrio, o diretor consegue ainda ser
um dos cineastas em atividade que fazem da sinceridade o princípio nada ingênuo,
e até mesmo incômodo, da dramaturgia. Novembro de
2007 editoria@revistacinetica.com.br
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