in loco - II semana dos realizadores
Terras, de Maya Da-Rin (Brasil,
2009)
por Fábio Andrade
Ao
singular
Há uma razão clara para que Terras, longa de estréia de
Maya Da-rin, tenha seu título no plural. A diretora trabalha pela
fragmentação temática e estilística, onde as fronteiras entre
as nações são tão importantes quanto as texturas da natureza,
e a entrevista é tão permitida ao filme quanto a observação distanciada,
ou a estilização poética amineirada (pensando, aqui, em certa
produção da Teia, por exemplo) do que é documentado. De certa
maneira, Terras funciona como um amplo apanhado de diversos
caminhos e cacoetes do documentário brasileiro moderno, com subtextos
que vão de Coutinho a Marília Rocha com uma certa desenvoltura,
herdando virtudes e problemas de tudo que lhe cativa. Mas há algo
nessa opção pelo plural que parece ricochetear, pois o que existe
de mais interessante no filme de Maya Da-rin é justamente o processo
de reconstituição de algo singular (no sentido de número, não
de especialidade) a partir desses fragmentos. Isso acontece não
só pela maneira como esse apanhado estilístico rende um filme
que, ao fim, nos parece realmente uno, mas também pela maneira
como a dispersão temática restaura a unicidade do termo que conecta
todas as suas facetas.
“Terra” é a palavra que une planos aparentemente
tão distantes quanto o de um barco que se coloca na região fronteiriça
de países diferentes, e os inserts das ranhuras do terreno
e as cascas de árvore feitas irreconhecíveis em sua forma externa,
filmadas em apertado close. A operação mais valiosa de
Terras é justamente a de reduzir essas ambiguidades em
nome de uma nova ótica, fazendo com que questões aparentemente
distantes possam ser resolvidas mais facilmente uma vez que percebidas
como parte de uma mesma palavra: terra. É por isso que a fala
da índia Basília rende os melhores momentos do filme, pois
apresenta com clareza e admirável simplicidade os sentidos dos
procedimentos da diretora: se pensássemos na terra como nossa
mãe, admitiríamos a idéia de reparti-la em pedaços que pudessem
ser distribuídos às pessoas? Basília não fala apenas da terra
geográfica, e é possível dar um salto desse raciocínio para chegar
a algo mais essencial: e se voltássemos a pensar “terra” no singular,
obrigando com que as questões de fronteira sejam tratadas juntamente
às relativas ao caráter material da terra (sua cor, textura, constituição,
cheiro, relevo), às relações afetivas estabelecidas com ela, à
sua razão etimológica? Pensaríamos diferente se não esquartejássemos
a palavra (ou, por fim, a idéia) em tratamentos que, mesmo
quando intimamente ligados, são encarados como porções isoladas
e que não se atravessam? E se pensarmos tudo isso como “terra”?
E se conseguirmos desemaranhar o documentário de todo seu discurso
de “escola” e de “tradição”, e pensássemos uma filmagem apenas
como uma filmagem, livre de quaisquer amarras?
A palavra, mais do que uma limitação (lembremos
de Brakhage e o garoto imaginário que vê um gramado sem conhecer
o conceito de “verde”), se torna mais propriamente um “limite”,
pois é ela quem determina o que está representado por ela, e o
que não está representado. Ela é a fronteira do sentido, e Terras
não parece ser um filme reticente em relação às fronteiras, mas
sim ao que as tem determinado. É hora de mudar o referencial.
Daí um dos momentos mais fortes do filme ser justamente o musical,
quando, em uma pista de dança, ouvimos uma canção cuja letra parece
conectar o inconectável, sem funcionar a partir de uma matriz
cartesiana. Terras trabalha pelo resgate dessas conexões
que, remontadas a uma mesma idéia, permitem o surgimento de novos
pontos de vista. O território não mais se separa da terra, assim
como a palavra não se separa da fala, e a fala não se separa do
corpo – daí a eloquência de Basília, que se expressa tanto pelas
palavras quanto pela mímica, pela performance que representa com
seus braços e seu rosto. O que está em jogo, para o filme e no
filme, é proporcionar este retorno à idéia, que é aquilo que costuma
se chamar de organicidade.
Janeiro de 2010
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