A
Teta Assustada (La Teta Asustada), de Claudia Llosa (Peru/Espanha,
2009) por Rodrigo de Oliveira Sem
alarmes, sem surpresas
Muito rapidamente, A
Teta Assustada nos apresenta seu melhor e seu pior, aquilo que poderia torná-lo
um filme único pela consideração da beleza da arte como um
dado fundamentalmente escapista (no que a arte seria, aliás, o melhor lugar
para onde se escapar quando preciso) e também aquilo que o torna tão
banalizador desta mesma beleza, tão entregue às aparências,
tão dedicado a perceber na dor apenas aquilo que a torna mais exótica
e agradável aos olhos de quem nunca poderia vivê-la da maneira como
estes personagens peruanos pobres e interioranos vivem, num movimento de afastamento
eterno pela diferença abissal entre o mondo bizarro e um mundo supostamente
são. A primeira seqüência do filme de Claudia Llosa é
estarrecedora: partindo da tela preta, ouvimos o canto de uma voz envelhecida,
lamuriosa, e o que ela canta faz toda a diferença. A música natural,
improvisada, é o espaço para onde a jovem Fausta e sua mãe
se recolhem quando precisam verbalizar a tragédia de suas vidas, e é
como se esse lugar fosse um campo neutro, onde se pode lembrar do passado sem
se deixar atingir novamente por ele - é na música, e só na
música, que mãe e filha conversam abertamente, se revelam entre
si e para nós mesmos. Logo veremos o rosto da velha, prestes a morrer,
e a face incrivelmente expressiva de Magaly Solier, dividindo um momento com sua
mãe que, ela sabe, será o último. As duas cantam sobre casamentos
destruídos, estupro, terrorismo e violência, a obrigação
(nunca saberemos se simbólica ou real) de se comer o pênis morto
do marido, tudo embalado numa melodia que tira imediatamente a estranheza das
situações narradas apenas para nos levar diretamente ao interior
daquele relato. Nesta primeira seqüência, tudo ainda está submerso
em A Teta Assustada. Mas Claudia Llosa não
agüenta o fôlego por muito tempo ali embaixo. A morte se confirma,
um sangramento em Fausta anuncia o mal, e logo estaremos num posto médico
onde o tio da moça, sem muitas cerimônias, conta a sinopse do filme
ao médico e ao espectador (tudo, é claro, disfarçado como
"diálogo natural", sobretudo pela escolha de um não-ator
para o papel do tio). O que era do terreno do mistério real e inalcançável
enquanto informação factual no canto entre mãe e filha vira
agora a reafirmação de uma trama tão absurda - e não
importa que ela se dê de fato em algum lugar do Peru, porque não
é com esses olhos que o filme trata o assunto - que parece saída
de um almanaque de realismo fantástico de quinta. A mãe fora estuprada,
e Fausta é filha desta violência. O medo de um novo ataque é
transmitido através do leite materno e, para evitar sofrer a mesma coisa,
Fausta introduz uma batata em sua vagina, interditando qualquer relação
com o membro masculino - mas, na verdade, com a idéia do masculino no geral.
A batata, é claro, brota dentro do corpo da moça, mas nada que Fausta
não possa resolver com uma tesourinha de unha para aparar os galhinhos
(que caem aos seus pés, em plano-detalhe escabroso). Pronto: platéias
dos festivais gringos, regozijem. E
como se essa tragédia pessoal não fosse o bastante, ainda temos
o contexto. A família de Fausta tem um buffet e organiza casamentos, cerimônias
cafonas e cheias daquele colorido local tão irresistível de se abusar;
no quintal da casa seu tio constrói uma piscina improvisada num buraco
na terra, onde as festinhas familiares acontecem nesse mesmo espírito bufão,
e quando se vai escolher o caixão para enterrar a mãe (é
claro, não há dinheiro para comprar algo digno), vemos os diversos
ataúdes temáticos da funerária, igualmente coloridos, igualmente
cômicos. A Teta Assustada tenta nos convencer que só toma
um longo tempo com estas manifestações do "atraso alegre"
porque, afinal de contas, este é o ponto-de-vista de Fausta, é através
dela que o filme percebe o mundo, o que é uma mentira enorme - a colocação
da atriz nestas seqüências é sempre forçada, revelando
de maneira primária a presença dela ali para justificar o estrangeirismo
do olhar de Claudia Llosa com o estrangeirismo natural da personagem em relação
a um universo do qual ela se retirou voluntariamente.
É,
aliás, nesse desvio tomado a partir da figura de Fausta que A Teta Assustada
prova seu grande equívoco. Fausta tem a dimensão das grandes personagens
da história da literatura trágica: exilar-se dentro de sua própria
vida, tomar uma decisão tão infantilmente radical para evitar a
violência, só conseguir se expressar através do relato cantado,
tudo isso a torna uma dessas figuras da alienação com as quais os
instrumentos habituais de aproximação serão sempre falhos,
porque incompletos, mas também porque ela própria é incompleta,
indomável. A Teta Assustada, ao contrário, tentará
o tempo todo diminuir o peso de sua história a um denominador mínimo
simplório, conseqüente, e no fim dá a impressão que
não tem a menor idéia da riqueza que registrou durante o tempo todo
sem nunca chegar a filmá-la de fato. Investir no caráter bizarro
e fantástico de Fausta é ignorar que há nela uma patologia
grave, que sua tristeza não a tornou apenas uma adolescente cambaleante
e apavorada que corre para vomitar toda vez que se encontra com um homem (existem
cenas assim), mas sim um corpo alterado fisicamente, re-humanizado a partir de
bases completamente diversas, e que, portanto, pede também da câmera
uma alteração, uma perspectiva menos opressora. Esta
é uma história de materialização das emoções,
afinal de contas: o medo de ser violentada não se transmite apenas pelos
olhares, pelas histórias contadas de mulher a mulher, mas pelo leite materno,
plasmado no líquido. Como nas canções de mãe e filha,
este é um mundo que já se pensa a partir da experiência da
superfície, da tangibilidade das sensações. Ele já
oferece objetos o bastante para sua exibição (porque compreensão,
de fato, talvez nunca se tenha, e é melhor que seja assim). Mas A Teta
Assustada tenta criar objetos, ele próprio, a partir de uma agenda
que absolutamente não diz respeito àquelas mulheres, e que fatalmente
denunciarão a sua própria alienação - mas por sentir
de menos, e não como Fausta, disponível demais à experiência
sensível. O corolário do cinema de arte contemporâneo está
todo lá (sobretudo no automatismo da escolha do plano geral fixo, nas sombras
inescapáveis da fotografia, na observação higiênica
não importa o quão suja a cena se proponha a ser), e Claudia Llosa
consegue ainda reduzir toda a complexidade daquele relato cantado no início
a uma fábula primária da pequena órfã acossada por
um mundo cruel - a entrada de uma "bruxa má", branca, loira,
alta e esguia, que por acaso também será patroa de Fausta e roubará
seu talento musical, chega a ser constrangedora. Fausta tenta cantar seu caminho
através do desagradável da vida, enquanto Claudia Llosa filma exatamente
para se eximir dele. Agosto
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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