Tetro
(idem), de Francis Ford Coppola (EUA/Argentina/Espanha/Itália,
2009)
por Cléber Eduardo
Um
formalista do drama
Talvez alguns críticos tenham,
em algum momento de sua atividade, que lidar com certos paradoxos,
constituídos pela diferença entre seus critérios racionais de
valoração estética – teoricamente o norte de suas avaliações –
e o comportamento “não conceitual” de sua sensibilidade. Uma experiência
cinematográfica, quando posta em palavras, surge dessa convivência:
entre a razão e a sensação. Quando os critérios valorativos tornam-se
excessivamente rígidos e delimitados, conscientes de si mesmos
como critérios e sustentados por afirmações ontológicas (como
se uma arte tivesse uma genética), a experiência estética avizinha-se
de uma estratégia de “bem te quero-mal te quero” – bem querendo
os filmes confirmadores e obedientes aos paradigmas de valor,
mal querendo aqueles que atentam contra a genética da arte. Não
se procura algo no cinema, escreveu Michel Mourlet, sem se saber
de que se está atrás. Mas se soubermos demais, convenhamos, nada
teremos a encontrar, porque, amplamente, tudo está pré-visto.
Se seguirmos essa orientação de princípios qualificadores
anteriores ao contato com a obra, talvez tivéssemos de rechaçar
Tetro, de Francis Ford Coppola, não sem algumas razões
pelas quais atacamos outros filmes e cineastas (razões vinculadas
a noções negativas de artificialismo, de causalidade psicológica,
de exposição das pegadas da narração fílmica e de atentados contra
o limite da verossimilhança). Tetro é um filme indiscreto,
para dizer o mínimo, e, por isso, segundo visões críticas possíveis,
pode ser considerado vulgar, calcado em excessos. Também pode
ser avaliado pelo desrespeito a algumas ortodoxias de troca de
planos no cinema narrativo pautado pela energia cênica entre personagens
em conflito. Por essa mesma orientação, de partir de critérios
prévios de julgamento, porém, também podemos defender com racionalidade
o mesmo Tetro – e pelos mesmos motivos dos ataques no caso
anterior (cuidado visual, crença sem receios na ficção, tom e
espírito de fabulação, exposição da construção artística, convivência
entre formalismo e dramaturgia). Toda a diferença de valor estará
no critério de valoração e não em diferenças sobre se isso foi
visto ou se aquilo foi ignorado. Por isso, talvez diante de alguns
filmes especiais (entre os quais Tetro), os princípios
precisem aparecer no fim, não como um fim. Isso vale para os militantes
de suas características, mas principalmente para os críticos de
suas opções. Talvez só com essa suspensão de a prioris
possa-se viver uma experiência de espanto, de abertura para algo
que não confirma nossa visão, mas a seduz para além dos nortes
racionais.
Benjamin
quer saber da família. Está em viagem sem destino, mas de olho
nas raízes. Tetro quer distância de nome e sobrenome. São irmãos
que, desde muito, já não se vêem. Benny vai atrás de Tetro, que
está sumido em Buenos Aires, rompido com o pai famoso, um maestro
de ego destrutivo. Um pergunta. O outro não responde. Um investiga.
O outro guarda segredo. Na mediação, Miranda, médica e esposa
de Tetro, voz da lucidez, corpo de latina, alma de freira. Miranda
e Benny, no começo, estão na sala dela. Tetro, que ainda não deu
as caras no filme, fica no quarto. Há uma porta entre ele e os
outros dois. Miranda pode atravessá-la. Benny não. Essa porta
é a síntese do primeiro movimento dramático em Tetro. Será
preciso encontrar as chaves para sua fechadura. Será a missão
de Benny.
Na primeira metade, depois de apresentadas as
características iniciais de Benny, Tetro e Miranda, e depois de
introduzidos os circenses coadjuvantes do mundo do teatro, a narrativa
concentra-se nos vestígios do passado, segredos de família. Todos
os acontecimentos plantados no presente parecem intervalos do
quebra-cabeça emocional sobre os traumas emocionais de Tetro.
Benny vai atrás desse passado e, quando o acessa por uma mediação
fabular (textos do irmão), Tetro reage aos berros. Um enigma devassado.
Se o passado move a primeira parte, a segunda será pautada pelo
presente, por ações semeadoras do futuro. Na segunda metade, acessada
parte da informação antes completamente secreta, Benny, por caminhos
questionáveis, prepara a legitimação do irmão marginalizado. É
preciso projetar o futuro com o exorcismo dos fantasmas determinantes
da dor. Tetro recusa o sucesso e o exorcismo, dá uma sumida e,
ao voltar, abre o cofre de seu segredinho. Baixa todas as cartas.
Encara a luz que controla (no teatro), não para ser ofuscado (como
nos holotes das Tvs), mas para ver por meio das sombras.
Tetro
é da mesma linhagem de Motorycle Boy, personagem de Mickey Rourke
em Rumble Fish. É o mesmo e é outro: há um senso de deslocamento,
a recusa ao papel de modelo para o irmão, o olhar de quem partiu,
de quem não tem lugar, mas, ao mesmo tempo e em contraste, Tetro
é mais adaptável – está casado, é querido em sua comunidade de
relações, sem, com isso, paradoxalmente, apagar o espírito da
rebeldia, já aposentada em Motorcycle Boy. Tetro ainda reage.
Não se deixa agarrar. No entanto, se adequa, em alguma medida.
Nesse sentido, Tetro é o anti-O Poderoso Chefão, colocando
a família, antes de tudo, como um peso do qual se livrar, de modo
a construir outros padrões, não um peso a ser manter. Não há,
como na trilogia, um compromisso e uma missão, uma inevitabilidade
e uma responsabilidade dai derivadas. Em Tetro, a família
é um poder sufocante, gerador de traumas, de enlouquecimento,
de anulação de identidade. Não há da parte de Coppola um atenuante
para o pai, caricatura do artista atolado no próprio ego, que
não enxerga ninguém por perto.
Isso,
que poderia ser a fraqueza do filme, mas mostra ser sua força.
Está nessa falta de relativização do pai, e de negociação diplomática
no final, uma firmeza de posicionamento tão pouco presente no
cinema contemporâneo. Nada de relativismos. Nada de ambiguidades.
O mal é localizável, está concentrado em um corpo-imagem, que
por sua vez condensa a fama, a vaidade, a competição em nome da
arte. O filme fecha com seus personagens-chave contra as razões
geradoras do sofrimento desses personagens. E o motivo é o pai,
o talento reconhecido, o chefão para quem se devia baixar a cabeça,
mas para o qual, na morte, não se baixa mais. Muito longe dos
Corleonne.
É um filme de acontecimentos vulgares e clássicos.
Um adolescente em busca do irmão, um irmão rompido com sua família,
um pai tirânico como motivação do mal estar, segredos do passado,
uma abertura para uma reordenação do mundo em crise. No entanto,
se assim descrito não pode sequer lembrar algo próximo de um grade
filme, as razões de sua grandeza, longe de estar nos acontecimentos,
só podem estar no “tom”. É dessa forma de moldar e modelar os
materiais dramáticos e visuais que irradia a força de Tetro.
Não adianta descrever plano a plano os procedimentos, não adianta
dissecar operações, essa força nem sempre é capturável por palavras,
mas transforma um material vulgar em obra densa, não somente plástica.
Sabemos que, se pode fazer rebuscado, se pode adicionar algo,
Coppola não faz o mais simples, o menos visível. Isso pode ser
bom ou não. Parece ótimo em A Conversação, Apocalipse
Now e Rumble Fish. Parece arrasador em O Fundo do
Coração. Não se pode esperar de Coppola juramentos a Rossellini
ou Renoir: o cineasta persegue a grandiloquência, um certo espírito
de estúdio Cinecitta, de controle do descontrolável, da invenção
de um mundo de imagens, de uma tradição de artistas de formas
complexas. Mesmo que o mundo, em suas imagens, possam referir-se
ao mundo (fora de suas imagens).
A
primeira noite de Benny na casa de Tetro, por exemplo, com Benny
na sala com Miranda e Tetro sem sair do quarto, parece tirada
de um pesadelo assustador. É uma situação concreta, tornada
onírica pelo absurdo dela, por seu encaminhamento, não apenas
pelo preto e branco – essa marca material da estilização da imagem.
Em Tetro, que acondiciona no mesmo torno os artifícios
assumidos e o compromisso com a ação dramática, temos um híbrido
entre formalismo e dramaturgia. Apesar de empetecado e cheio de
acúmulos, com enquadramentos e iluminação bem acentuados, com
inserções paralelas à narrativa principal, ele é antes um filme
dramático, mais que formalista – embora um tanto problemático
na ordenação de seu material, um tanto sem freios na forma de
resolver algumas situações, como se pusesse o penteado de noiva
sob os riscos de um conversível em dia de vento. Ainda assim,
permanece um filme dramático, com força dramática, que parece
imprimir na imagem a convicção de quem dirigiu. Que convicção?
A de ter personagens suficientemente poderosos para justificarem
as opções de alto risco de descontrole.
Essa crença de quem dirige não é metafísica. Determina
operações concretas na forma de estimular os atores, por exemplo,
e de planejar uma visualidade para o mundo dos personagens. Se
temos uma sensação de acúmulo de procedimentos e não de concentração,
essa é uma impressão de importância secundária, porque, em um
filme todo voltado para um personagem (pelo que dele se mostra,
mas também pelo que dele se omite), essas plasticidades vaidosas
tornam-se apenas marcas subjetivas de estilo, algo a se relevar
ou a se deixar maravilhar (se possível), sem ver nisso um compromisso
com a estilização antes do respeito ao drama dos personagens.
É a diferença entre Coppola e Wong Kar Wai. Um é atraido por sinais
de vida na imagem. O outro não.
E
uma das razões dessa força dramática é Vincent Gallo. Se o jovem
Alden Ehrenreich sabota o personagem de Benny, apertando
os olhinhos como único código para mostrar alteração emocional,
Gallo não recorre a quaisquer sinais, a nenhuma mudança na expressão
do rosto, nenhuma simbolização de interior. Fala-se mais de seus
traumas do que ele revela de suas feridas. É em como as esconde
que elas se insinuam no personagem. Sua construção se dá na força
da presença, expressão e não símbolização, uma superficie sem
significados, cuja expressividade está na falta de setas indicativas,
na relação do rosto e do corpo com a câmera – não um rosto e um
corpo antes da câmera, não apesar da câmera, mas sempre em relação
a ela e para ela. Tetro é Gallo filtrado e extraído pela
sensibilidade de Coppola.
É muita coisa em um panorama de filmes tão desanimados e apáticos
na relação com o movimento e com as dores da vida. Nem todos precisam
se engajar na onda “zeniilista” ou de apatia feliz e acomodada
da pauta da contemporaneidade. Há ainda quem reaja aos gritos,
pondo fogo em cenário e deixando a noiva descabelada no conversível,
mas sem abrir mão do conversível, do excesso e do descontrole,
por acreditar neles como motor do cinema. Não é para se concordar,
mas, se possível, deixar-se encantar.
Janeiro de 2011
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