Tetro
(idem), de Francis Ford Coppola (EUA/Argentina/Espanha/Itália,
2009)
por Paulo Santos Lima
O
mais radical chiaroscuro de Coppola
O rosto de Tetro é o “rosto”
de Tetro. É também a face do ator Vincent Gallo, cujos traços,
linhas, queixo avante, lábios finos, olhos de íris claras sugerindo
profundidade, compõem uma máscara estatuária bastante rica iconograficamente.
Um rosto cujos olhos buscam a luz, já desde o segundo plano do
filme, com ele olhando vidrado o filamento incandescente da lâmpada
cutucada pelas mariposas. O rosto de Tetro é o próprio corpo de
Tetro porque é este personagem quem trava uma relação direta
com a luz. E é sobre luz que a história orbita. Também a luz como
matéria-prima com a qual o cinema é realizado, mas, sobretudo,
a luz como signo, como objeto que remete a algo: a verdade, a
sabedoria, o esclarecimento, o gênio. Com o adendo de que Francis
Ford Coppola dá também para a luz de seu filme um outro papel,
mais importante: o de dissonância, fibrilação
e ilusão de óptica. Um papel mais a ver com o drama. O drama de
Tetro. E de Tetro.
Do enredo, então, basta citar
que Angelo Tetrocini (Vincent Gallo)
é menosprezado pelo seu pai Carlo (Klaus Maria Brandauers), um
músico renomado que decreta que na família Tetrocini
só há lugar para um gênio. Tão cruel quanto roubar a namorada
do filho, por exemplo, é Carlo dizer ao irmão, Alfred, também
músico que lhe ensinou tudo, para retirar o sobrenome. Estamos,
aqui, num terreno mais a ver com o epigráfico,
com nomes traduzindo títulos que, por sua vez, surgem por uma
espécie de construção que cria a “marca”. Carlo é puro reconhecimento
e fama. Angelo
troca seu nome e assume-se como outro “personagem”, Tetro, abrindo
mão do Tetrocini de sua
família. Mas, como seu próprio nome sugere, Tetro vive ainda sob
a assombração dessas marcas. A narrativa que a história de seu
egoísta pai, de sua mãe morta em acidente automobilístico, amada
que o desprezava etc, lhe é tão pesada quanto valiosa para escrever
seu livro inacabado – inacabado porque, como uma obra bastante
autoral, sua estética tem muito a ver com a vida de quem a realiza.
Ao
seu irmão de 18 anos, Bennie, que vai a Buenos Aires reencontrá-lo
após anos de ausência do mais velho, Tetro esconde algo,
uma revelação. Esta é o motor do enredo, mas, em síntese, a história
é mesmo sobre a relação conturbada de um homem com sua família,
simbolizada pelo patriarca que é também pai. É a história de um
homem às voltas com uma falsa idéia de sua família, aquela
mais a ver com a tradição. O que é concreto (as relações entre
os seres) versus o que é simbolizado (a imagem). Um problema de
imagem, ou de luz, pois, entre a imagem e o que ela representa,
Coppola nos diz que há uma larga pradaria. E a imagem não se pega;
o que se apalpa é aquilo que ela registrou.
Voltemos, aqui, à luz; o preto-e-branco, como
ele próprio falou, rende resultados fotográficos bastante bonitos,
e nada melhor para ele trabalhar, como um pintor do século 15
ou 16, com o chiaroscuro. O claro-escuro, luz e sombra,
cores mais escuras e claras, em seus contrastes nas telas pintadas,
eram os que davam a forma e volume aos objetos representados,
determinando um certo “realismo” às pinturas. Um dos pressupostos
era um equilíbrio da luz. Já Coppola, mesmo respondendo à uma
certa tradição estética, é um homem cuja formação e olhar foram
construídos no século 20, especificamente nos anos 60 e 70. A
luz em Tetro, assim como a névoa em
Apocalypse Now, embaça, tira o foco, cria
uma hemorragia na tela.
Por
mais que paulatinamente o filme nos dê luz sobre os acontecimentos
acerca de Tetro, seu irmão Bennie e a família Tetrocini, há algo
do qual a luz, literalmente dizendo, não se livra: sua capacidade
de hipnotizar, fazer descolar e atrapalhar o senso. Quando ela
surge em quantidade arterial, a cena ganha trilha sonora e leitura
bastante dramáticas, quase descoladas do corpo do filme. A sequência
de Tetro olhando a luz que emana das montanhas do caminho para
a Patagônia, ele quase saindo do corpo, olhos respondendo à luz
com a própria luz, é certamente uma imagem capitular do filme.
Pode-se arriscar um punhado de leituras sobre o que significa
o olhar zumbi de Tetro à luz, as mariposas que batiam na lâmpada
do início do filme etc., mas o fato é que essa situação se basta
por si, autônoma, quase isolada do filme, pois o significado fica
aberto demais, muito além do que a trama vai nos fornecendo. Tetro
e sua relação com a luz é uma imersão muito particular, muito
profunda e íntima, do mesmo modo que Michael Corleone guarda algo
dentro de si, ou Kurtz, mesmo falando à beça sobre seus traumas,
jamais deixa claro o que lhe fez romper com o sistema, ou o desiludido
Motorcycle Boy que guarda uma história e consciência para si.
No
mais, para um filme que fala de nomes, marcas, símbolos, há uma
rica seleção de objetos que orientam o assunto. Placas,
como a do histórico Café Tortoni, portas, janelas, colunas, espelhos,
vidraças, varandas carcomidas a ver com o bairro de La Boca,
o skyline dos prédios da capital portenha – Buenos Aires
até é citada como parte da história dos personagens, mas serve
sobretudo como um espaço de coleta de objetos para Coppola construir
suas imagens, como um pintor usando tinta ou algumas paisagens
para construir uma própria e única no quadro.
Por mais temerário que possa
parecer tal expressão, ainda assim é adequado dizer que Tetro
é todo representação. Ou seja, a instância
narrativa, muito bem firmada num narrador onipresente, utiliza
os mais diversos recursos. Teremos, por exemplo, trechos ou parte
do áudio de Os Contos de Hoffmann, de Michael Powell e
Emeric Pressburger, servindo para ilustrar a pequena tragédia
sentimental que Tetro sofreu no passado. Ou esse mesmo filme servindo
de modelo para a peça que Bennie conclui a partir dos escritos
de Tetro, a qual, por si, já é uma representação intradiegética
da história da família Tetrocini.
Sobre
Carlo, a atual mulher de Tetro, Miranda, lerá uma biografia impressa
no encarte de um CD do maestro. Troca-se da janela 2.35:1 em preto-e-branco
para a 1.85:1 colorida sobretudo de vermelho, e a hemorragia deixa
de ser a da cor para ser a do quadro. O ápice é uma tensa conversa
entre Tetro e sua irmã anunciando seu rompimento com a família
transmitida através de uma fita K7 (quem teria gravado essa conversa:
Tetro, Coppola ou a instância narradora?). Está claro: tudo no
longa evidencia a representação, a intermediação, a encenação
– Tetro nada mais é que um personagem que Angelo
decidiu assumir. Até o funeral de Carlo será como uma cena, um
grande espetáculo a altos sons e imagens, candelabros, panneau
e estandartes. Tudo é cena.
A luz pode ser, então, a própria representação
em suas várias formas, sempre a serviço da trama. Coppola como
a mariposa que circunda e tenta mergulhar no filamento ultraclaro.
Coppola como Tetro. E, como tal, o respeito e adoração do diretor
à luz – aqui sim a luz física mas também a luz do gênio criativo
– deve a esta sua eternidade aos nossos olhos. Tetro resgata o
irmão/filho Bennie da enxurrada de faróis automotivos da avenida
e diz “somos uma família”. Uma família sem as falsas ilusões que
mitificam o papel de qualquer família como algo sagrado,
intocável e legítimo. Uma família, agora, restaurada em seu sentido
mais primário, original, aquele dos afetos correspondidos, de
amores verdadeiramente exercidos.
Mas, para tal, deve-se sair do quadro. É no extracammpo que ocorrerá
o happy end de Tetro e o seus queridos. Longe da luz, que
está no quadro, hemorrágica, enganadora, mas fascinante e motora,
e bastante firme e absoluta.
Artista, Francis Ford Coppola não abandona a luz.
E nem é abandonado por ela. Cineasta do drama e da tradição, um
cineasta renascentista. A idéia de belo e de representação está
no estilo de sua obra. Não bem representar o real, mas sim aquilo
que ele, Coppola, enxerga como sua realidade. Assim, da
mesma forma que a família Corleoneé uma visão particular de Coppola
muito contaminada pela sua história familiar e do que já fora
representado anteriormente em outras obras e tradições, em Tetro,
tudo se orienta pela intermediação – e por isso este é seu filme
mais essencial, elementar e esteticamente avançado.
Janeiro de 2011
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