textículos - edição
especial mostra de sp
Admiração Mútua (Mutual
Appreciation),
de Andrew Bujalski (EUA, 2005)
por Paulo Santos Lima
Admiração
Mútua aproxima Andrew Bujalski
(mais na intenção, é fato) de grandes do cinema independente americano,
como Tarantino, Wes Anderson e Edward Burns. Muito se diz da proximidade
desse filme com os de John Cassavetes, e de fato há certo parentesco
com a captação do momento encenado, deixando rebarbas e mutilando
o desenvolvimento da trama. Mas falta a mise-en-scène casseveteana,
assim como uma impressão de improviso, que aqui, neste Admiração
Mútua, fica apenas na voz, nunca no ator em cena. E por que
será que eu senti que o filme se aproxima mais do Jim Jarmusch
de Estranhos no Paraíso do que do Cassavetes de Shadows
e, um pouco, de Faces? Porque é a fotografia o que caracteriza
o trabalho de Bujalski, num preto-e-branco sujo, granulado e deixando
o borrado do preto invadir o branco, típico do primeiro cinema
de Jarmusch. Isso e as atuações também, que estão mais próximas
de um Down by Law do que de um Faces.As referências
não são um bolo de noiva: no caso desse diretor, sua cinefilia
chega à tela em estado bruto, quase como uma injeção na veia.
Mas a bagagem de Bujalski não o livra de certos problemas. Ainda
que o tema seja banal, está lá um retrato que não pretende um
julgamento superior sobre alguns jovens que simplesmente vivem,
equilibrando-se na corda bamba das banalidades cotidianas (outro
dado que se faz marca chancelada no indie). Mas o filme
acontece apenas quando os atores acontecem, pois é no verbo e
na expressividade que a câmera toma atenção. Aí temos Justin Rice,
soberbo, no papel de Alan, músico que tenta um lugar ao sol, e,
às vezes, Rachel Clift, que faz Ellie, namorada de Lawrence (Bujalski)
que percebe ter uma atração pelo amigo do namorado. Um tema que
frequenta as comédias românticas orquestradas pelos grandes estúdios.
E um apreço pela performance do elenco que, pelo visto aqui, não
seria loucura considerar como a peça de interseção para toda a
produção norte-americana contemporânea.
A Audiência
Vai Começar (L'Udienza é Aperta),
de Vincenzo Marra (Itália, 2006)
por Eduardo Valente
Curioso
como os documentários sobre as instituições
encontram sempre interesse. Só o processo judiciário,
foco deste trabalho, já foi radiografado por Frederick
Wiseman, nos EUA; Raymond Depardon, na França; e Maria
Augusta Ramos, no Brasil. O grande diferencial do filme de Vincenzo
Marra é que ele usa uma curiosa aproximação
estética com seus personagens onde a câmera se aproxima
deles como num filme dos irmãos Dardenne (ver foto acima).
Marra acompanha três membros do poder judiciário
(um juiz, uma assistente deste e um advogado) ao longo do processo
de apelação de um caso relacionado com a Camorra
(é extremamente importante relatar que o filme se passa
em Nápoles, onde aliás o diretor se formou em Direito,
antes de partir para o cinema). Durante um certo tempo, o filme
mantém nosso interesse, acima de tudo pela personalidade
absolutamente controversa do juiz enfocado, que distribui pelo
filme declarações quase aterrorizantes do pensamento
conservador. Mas, logo percebemos que é um típico
filme de tese, que foi aos personagens para extrair uma conclusão
prévia: o processo judicial é uma farsa, especialmente
em Nápoles, mas por definição (não
por acaso o processo que acompanhamos se arrasta, e termina inconcluso).
Não é uma tese sem sentido ou interesse, mas seria
mais honesto da parte do cineasta deixar claro para todos que
era isso que ele procurava provar, ao invés de simplesmente
fingir uma cumplicidade/abertura com os seus personagens, e um
interesse pela realidade individual dos personagens para o espectador.
C.R.A.Z.Y. – Loucos de Amor
(C.R.A.Z.Y.),
de Jean-Marc Vallée (Canadá, 2005)
por Eduardo Valente
Depois
de uma primeira sequência que parece indicar uma certa tendência
ao humor “esperto” e modernoso, C.R.A.Z.Y. conquista o
espectador com um inesperado ritmo mais ralentado e um cuidadoso
trabalho com a relação entre os personagens, tanto através de
um trabalho de atores muito destacado, quanto pela delicadeza
na composição de cada personagem (onde o filme faz uma feliz opção
por desenvolver mais alguns deles – especialmente o pai – e deixar
outros mais como tipos – o irmão atleta, o irmão intelecual, etc).
Sua atenção aos detalhes (o jogo dos olhares entre os atores,
a reconstituição de época absolutamente discreta e pouco auto-centrada)
diferencia o filme e dá frescor a uma estrutura já mais do que
conhecida – a do filme de conflito de gerações. Infelizmente,
da metade para o final os tons melodramáticos começam a ganhar
peso excessivo no filme, que com isso perde um pouco da leveza
que o faz quase flutuar na primeira hora. E, pior ainda, quando
o protagonista se exila em Jerusalém, o filme perde de vez o norte
– uma vez que o que dava real força ao filme era as relações familiares,
com o isolamento do personagem e sua individualização de conflitos,
ele se revela bem menos interesse do que como parte de um grupo.
Se com isso o filme perde um pouco do seu encanto, nem assim pode
ser considerado desinteressante.
Edifício Yacoubian
(Omaret Yakobean),
de Marwan Hamed (Egito, 2005)
por Paulo Santos Lima
Uma
sinopse pode destruir um dia. Sobretudo se ela, na sua imprecisão,
der contornos atraentes a filmes que, cinematograficamente, não
merecem as horas gastas num festival que às vezes exige uma onipresença
para darmos conta de sua grade. Caso do egípcio Edifício Yacoubian
– que, pior, dura 165 minutos. A sinopse não mente, mas na sua
leitura temos a impressão que o tal edifício será um espaço de
experiências. O centro do filme está na relação (sobretudo verbal)
entre personagens, não necessariamente onde eles vivem, transitam,
vivem. Não faria diferença, então, se o prédio, a loja de carros,
as ruas do Cairo, etc fossem meros cenários. O filme tenta um
painel humano amplo, indo do aristocrata decadente e galanteador
às mocinhas românticas e interesseiras, dos políticos corruptos
ao rapaz pobre que se converte ao islamismo e é torturado pela
polícia, do jornalista gay que sustenta um militar casado ao dono
de uma loja que bolina suas funcionárias. Fica claro, logo no
início, que o dinheiro é uma questão para todos ali, pois a miséria
germinada pelo capitalismo é um dos assombros no Egito atual (segundo
o filme). O outro é o da contemporaneidade estar arruinando os
valores que faziam do Egito um grande país, que faziam do Cairo
uma cidade melhor que Paris, sem miséria, sem tristezas etc (segundo
o filme, novamente). Se já é problemático esse moralismo saudosista
(ou saudosismo moralista), que mais olha pra trás do que para
o seu momento, o pior está na dramaturgia e mise-en-scène,
pois tudo isso sai da boca dos atores, e muito pouco das imagens.
O resultado tem algo de Bollywood, mas sem os espetáculos cafonas
das seqüências musicais. Câmera mostra edifício por fora, às vezes,
e nos coloca dentro dele, no elevador, em algum meio corredor
e já dentro dos apartamentos, onde atores se esgrimam ou se amam
– verbalmente sobretudo. Há espaço para uma chanchada mais ousadinha,
inclusive com alguns momentos mais espetaculares, como quando
o jovem ingresso no Jihad faz treinamento para, tempo depois,
atacar a polícia que o seviciou. Mas, até aí, nada além do que
as telenovelas espetaculosas da Globo já vêm fazendo há tempos.
Electroma (Daft Punk's Electroma),
de Thomas Bangalter e Guy Manoel de Homem-Christo (Inglaterra,
2006)
por Eduardo Valente
Começa
o filme: dois robôs entram num carro, a grua desce, na placa
do carro lê-se: HUMAN. Cada um que decida daí por
diante se vai levar Electroma a sério ou não.
Para dar conta do mínimo de interesse que o filme tem (alguns
belos planos do carro no deserto; a engraçadíssima
sequência da caminhada pela cidade ao som de Curtis Mayfield),
me parece que o único jeito é não levando
a sério. Mas, curiosamente, o filme parece querer afirmar
ao contrário - e com isso, se torna tão somente
irritante e risível em suas "questões"
sobre desumanização, uniformização,
solidão, e vários outros "ão".
Se o Daft Punk é conhecido por ter alguns bons clipes e
um show altamente "visual", por este filme não
se conseguiria prever uma capacidade de articulação
entre som e imagem dos dois rapazes que não passe pela
obviedade - inclusive o filme piora consideravelmente todas as
vezes que entra em cena a música. O máximo de diversão
que se pode ter é brincar de "jogo das sete referências"
(Gerry, Brown Bunny, THX 1138, Zabriskie
Point...), mas todas elas aparecem aqui ou desvirtuadas ou
simplesmente desinteressantes.
Os Estados Unidos Contra John
Lennon (The U.S. vs. John Lennon),
de David Leaf e John Scheinfeld (EUA, 2006)
por Eduardo Valente
O
começo do filme faz temer o pior: surge o logotipo de uma
TV a cabo americana (VH1), e a introdução ao documentário
usa uma sequência de talking heads (termo técnico
para aquelas entrevistas bem caretas, onde só aparece o
rosto/tronco do entrevistado) com grafismos de um quase inacreditável
mau gosto ao fundo. Em seguida, quando começa a narrativa
em si, vem um daqueles exemplos do que o jornalismo americano
tem de pior: aquelas generalizações explicativas,
como se as duas frases pronunciadas sobre a infância de
John Lennon (sobre algumas fotos de arquivo) nos permitissem entender
tudo sobre aquele homem. É um susto e tanto. Mas, quando
o filme se assenta sobre o seu tema (a relação entre
John Lennon e o Governo americano entre o fim dos anos 60 e os
anos 70), daí por diante o filme entra nos eixos e passa
a mostrar o melhor do jornalismo americano: a atenção
obsessiva aos detalhes, a busca incansável por materiais
numa pesquisa deslumbrante e ilustrativa, e finalmente a questão
de ouvir os dois lados (deixando que os representantes do FBI
e do Governo Nixon se enforquem por seus próprios meios).
E o fato é que John Lennon tem uma história tão
fascinante e representativa da sua época, com um manancial
inacreditável de imagens e sons disponíveis (já
que boa parte de sua "luta" se deu em frente a câmeras),
que não dá para negar a força que a obra
adquire, de ressonância fortíssima e atual (não
por acaso dão entrevistas os atuais luminares da resistência
intelectual americana - Gore Vidal e Noam Chonsky - e ainda Tariq
Ali). Talvez seja um exagero chamar este trabalho de "filme",
pelo menos com os conceitos estéticos (mesmo em documentários)
que esta palavra carrega. Mas é um senhor programa jornalístico
de TV. E que, se a exibição em cinema ajudar a dar
maior visibilidade, tanto melhor.
A Estrada (Fang Xiang Zhi
Lu),
de Zhang Jiarui (China, 2006)
por Paulo Santos Lima
Zhang Jiarui não tenta um olhar "transcendente"
com seu cinema, um diagnóstico sobre o mundo atual, mas
sim um passadismo estranho, colocando o tempo anterior sempre
como o momento supremo. Estranho porque, no caso, o palco dos
acontecimentos desse A Estrada é a China dos anos
60 ao século 21. Uma história de amor, com chinesinha
meiguinha tendo seu romance com médico embargado pela dogmática
Revolução Cultural. Tudo mostrado com uma fotografia
de luz branca, daquelas que embelezam tudo. Uma história
que poderia estar em qualquer outro lugar, mas só poderia
estar nesta dramaturgia. Afinal, a China e sua história
aqui são apenas palco, e nunca resultantes de uma dialética
de espaços e personagens (ou seja, de mise-en-scène),
como nos filmes de Jia Zhang-ke, onde temos o escopo existencial
fermentado por uma condição que apenas está
na tela. Em A Estrada, a China é um dado enciclopédico,
uma adição de informação para embalar
o que está em jogo aqui, que é o romance púbere.
Fonte da Vida (The Fountain),
de Darren Aronofsky (EUA, 2006)
por Pedro Butcher
Fonte
da Vida talvez seja o exemplo mais próximo de como o cinema
pode ser kitsch (para usar um termo fora de moda). O sentimentalismo
e uma certa autopiedade são o motor desse filme sobre um médico
(Hugh Jackman) que tenta descobrir a cura para o câncer enquanto
um tumor cresce no cérebro de sua mulher (Rachel Weisz). Se a
ciência não poderá ser redentora, a arte poderá. As experiências
do médico falham, mas caberá a ele completar o livro que sua mulher
deixou incompleto, sobre um cavaleiro espanhol que foi à América
Central em busca de árvore da juventude – uma história que é apresentada
paralelamente, com os mesmos atores. Tudo isso permeado por uma
terceira subtrama, de tom filosófico-religioso, que visualmente
é uma das coisas mais cafonas que o cinema contemporâneo já produziu.
O Livro Secreto (Tajnata Kniga),
de Vlado Cvetanovski (França/Macedônia, 2006)
por Eduardo Valente
Difícil
saber o que é mais surpreendente: descobrir neste filme
de origem macedônia uma mistura entre Paulo Coelho e O
Código Da Vinci, ou constatar que, tendo em vista tudo
que a mistura acima pode fazer supor, o filme é inteiramente
"assistível" (mas não mais do que isso,
é verdade). A explicação para a segunda parte
da surpresa certamente tem seus pés firmememente fincada
nos Balcãs, porque o fato é que o cinema daquela
região nos prova seguidamente ser extremamente peculiar,
e quase sempre minimamente curioso. Por isso mesmo, em meio à
odisséia por que passa o personagem principal do filme
(guiado por um "professor sábio", interpretado
por Jean-Claude Carrière, o importante roteirista) não
faltarão cenas, personagens, paisagens, espaços
físicos que nos garantam algum deleite visual e risadas
gostosas, que podem nos fazer virar os olhos para o clima meio
"lenda pessoal" que a história tem - especialmente
o seu final. Não chega a haver muito no filme para se guardar
na memória, mas pelo menos ele tem sua graça própria,
o que já parece muito numa Mostra marcada pelos filmes
que só repetem formas de "cinemas de autor".
Mestres Americanos - John Ford/John Wayne: O
Cineasta e a Lenda
(American Masters John Ford/John Wayne: The Filmmaker and the
Legend),
de Sam Pollard
(EUA, 2006)
por Francis Vogner dos Reis
American
Masters é uma série de documentários feita para a TV americana,
que existe desde a década de 80 e que a cada episódio aborda uma
personalidade americana diferente - como George Gershwin, Dashiell
Hammett ou, no caso mais recente, John Wayne e John Ford (ou,
como o título diz, o cineasta e a lenda).
A relação interessante que se faz aqui é a vinculação do
mito de John Wayne com seu criador, John Ford, e todo o imaginário
cultural e cinematográfico que se formou a partir dessa relação
profissional, pessoal e sobretudo artística. O que o faz um produto
acima da média é a sobriedade com que trata os relatos sobre a
relação pessoal dos dois, as diferenças entre eles – o sociável
e de fino trato Wayne era republicano; o generoso, porém difícil,
Ford era democrata -, as mudanças e decadência do sistema de estúdios
e o posterior desaparecimento de ambos nos anos que se seguiram
à guerra do Vietnã e a transformação do público de cinema.
Não é um documentário pensado para cinema, mas para a telinha
da televisão – portanto, ele tem uma estrutura esquemática baseada
em entrevistas e material de arquivo, tudo muito bem fechado e
limitado, mas tudo muito objetivo e respeitoso com o material.
Mesmo sendo modesto em sua forma (fórmula?), o trabalho tem real
interesse em entender o lugar de Wayne/Ford na História do Cinema,
sem um sentimento decadentista e lamentador de muitos documentários
por ai. Os pesquisadores, críticos e cineastas (entre eles Bogdanovich,
Scorsese) buscam se focar no que realmente interessa no tema;
os comentários são sérios, sem deixar de serem admirados; as passagens
da vida de ambos se prendem aos fatos, mas são também relatos
afetivos que não repercutem fofocas e polêmicas vazias. John Ford/John
Wayne: o cineasta e a lenda é honesto e sabe muito bem a que veio,
diferente de muitos documentários que se dizem de “cinema” e insistem
em revirar cadáveres e serem completamente irrelevantes e banais.
Mudança de Endereço
(Changement d'Addresse),
de Emmanuel Mouret (França, 2006)
por Eduardo Valente
Mudança
de Endereço começa com uma gostosa brincadeira
com os filmes que usam Paris como "cidade-cartão postal";
em seguida, localiza seu personagem principal (interpretado pelo
próprio diretor) como uma nova versão do "Homem
que Amava as Mulheres"; e logo em seguida estabelece as duas
relações femininas que marcarão o personagem
no filme. É um bom começo, mas é também
o limite das pretensões do filme. Retomando com bastante
auto-consciência uma comédia de costumes e relacionamentos
que tem muito do Truffaut e do Woody Allen dos anos 70, Mouret
faz bom uso da sua persona simpática na tela, escreve alguns
bons diálogos e arquiteta outras boas cenas (menos por
como ele filma e mais por como usa as elipses), mas o fato é
que num certo momento do filme, a graça inicial parece
começar a rodar um pouco em falso, e vamos descobrindo
o mecanismo das piadas e andamentos dramatúrgicos do filme
com uma razoável antecedência. Ao fim e ao cabo,
temos aqui um simpático filme - e nada mais.
Olhe para os Dois Lados
(Look Both Ways),
de Sarah Watt (Austrália, 2005)
por Eduardo Valente
Olhe
para os Dois Lados está longe de ser especialmente diferenciado.
No entanto, na sua reciclagem de uma série de situações e ferramentas
já mais do que batidas (especialmente no cinema americano independente),
há algo de simpático, em especial na entrega de sua diretora
a seus personagens-atores, que lembra bastante o recente Eu,
Você e Todos Nós (filme que tem detratores violentos, mas
do qual eu gosto imensamente). Uma mesma melancolia desavergonhada
e pop, ainda que aqui menos bem dosada (há pelo menos uns
dois “clipes” musicais a mais do que o suportável). No seu cruzamento
de narrativas a partir de um acidente, também seria fácil rever
o cinema de Arriaga-Iñarritu, mas há que se notar tanto o cuidado
dramatúrgico de colocar o acaso como tema e não como imposição
do autor, assim como a ausência de um fatalismo sádico na relação
dos seres humanos.
Remissão, de Silvio
Coutinho (Brasil, 2006)
por Eduardo Valente
Não
é lá muito fácil entender quase nada sobre
a inclusão deste filme de Silvio Coutinho na seleção
da Mostra de SP - e, não por acaso, os diretores da Mostra
não estavam presentes na apresentação do
filme pelo seu diretor, ao contrário do lançamento
do novo trabalho de Karim Aïnouz, na mesma noite. A primeira
questão aqui é o latente amadorismo, mesmo tendo
em vista o claro empenho dos envolvidos no projeto. Desde a insuficiência
técnica (que começa com uma fotografia absolutamente
descompensada na sua captação de luz, e termina
com um transfer de digital para película que resulta
numa das imagens mais feias que vimos no cinema brasileiro recente),
passando por um elenco às raias do constrangedor (com variações
entre atores quase straubianos, pelo completo anti-naturalismo
e mecanicismo da leitura das frases do roteiro; e outros exagerados
e fora de tom), uma dramaturgia completamente capenga (o filme
todo se resolve em falas e mais falas, onde personagens explicam
tintim por tintim as personalidades uns dos outros, e as situações
vividas e suas interpretações), e finalmente terminando
com uma concepção artística absolutamente
fora de contato com qualquer contemporaneidade de produção
audiovisual, remetendo às telenovelas do SBT dos anos 80/90
(com destaque para a incessante e exagerada trilha sonora e os
cortes abruptos da edição). São comentários
que parecem duros com o filme, mas infelizmente relatam o que
foi visto na tela. Talvez o equívoco seja justamente a
exposição num evento como a Mostra, ao lado de alguns
dos principais e mais importantes filmes brasileiros do ano (e
em muito tempo). A companhia não faz bem nenhum a Remissão,
que tem cara muito mais de um exercício, de um aprendizado
do que um produto finalizado e preparado para um mercado audiovisual
de hoje. Infelizmente suas chances de chegarem ao público
nos cinemas são rarefeitas, já no nascedouro do
projeto, completamente desvinculado de qualquer linha de comunicação
atualmente existente. Ao selecioná-lo, a Mostra acaba tirando
a crença de que haja qualquer critério de escolha
nos filmes brasileiros que lhe são enviados, o que se já
havia sido impressão em anos anteriores, aqui talvez atinja
seu pior resultado. Com isso, lava as mãos de recusas criteriosas
na seleção, e atira o filme aos poucos leões
que se dispõem a ir conferi-lo (como nós, que fazemos
questão de ver), criando esta necessariamente antipática
resposta. Lamentamos por ela, mas não daremos continuidade
ao ciclo de condescendência, que nada tem de virtuoso, e
que não faz bem nenhum nem a Coutinho e seus colaboradores.
A eles, nosso desejo de ver outros trabalhos no futuro, mas a
indicação para que consigam montar estrutura técnica/artística
mais elaborada, ou adequem seu processo de produção
ao circuito exibidor seguinte.
A Vida Real Está em Outro
Lugar (La Vraie Vie est Ailleurs),
de Frédéric Choffat (Suiça, 2006)
por Eduardo Valente
É
uma pena sempre que um filme deixa escapar algo que realmente
o poderia fazer especial para se agarrar em algum "conceito
prévio", em algum "golpe de roteiro". É
isso que acomete o simpático longa de estréia do
franco-suiço Choffat. Ele parte de um determinado conceito
(uma pessoa que conhecemos por acaso pode fazer enorme diferença
na nossa vida), e o divide em três narrativas não
por acaso localizadas em trens ou estações (espaço
do encontro fortuito por excelência, além de espaço
extremamente "cinematográfico"). O problema é
que este conceito prévio sufoca o tanto de frescor que
pode haver em cada uma das histórias que Choffat conta,
porque elas sempre precisam ceder espaço às outras,
numa estrutura de montagem paralela cuja repetição
adiciona pouca força ao filme. Pior ainda, a história
verdadeiramente forte, por seus personagens, atores e situação
(a mulher que acaba num quarto de hotel com um completo estranho),
que valeria um ótimo longa por si mesma, não consegue
nunca desenvolver tudo que poderia por precisar ceder lugar à
tese que a junta com as outras duas (onde uma tem graça
eventual - a do trem - mas a outra é bastante dispensável).
O resultado é que, entre o esquematismo de sua estrutura
e a qualidade um tanto "qualquer nota" da fotografia
em digital do filme, Choffat não consegue fazer com que
seus atores e personagens alcem seu filme a alguma altura ou interesse
maior do que a de uma razoável sensibilidade humana e um
retrato algo fascinante de uma jovem Europa multinacional. Não
é pouco, mas poderia ser bem mais.
Verão de 2004 (Sommer
'04 Ander Schlei),
de Stefan Krohmer (Alemanha, 2006)
por Eduardo Valente
Há
dois filmes bastante distintos dentro deste mesmo Verão
de 2004. O primeiro, se não chega a instalar uma problemática
exatamente nova (a da forasteira que entra no seio de uma família
e lá instaura mudanças radicais em todos os membros),
apresenta uma forma extremamente sedutora. E sedutora é
a palavra exata, porque aqui se trata mesmo de corpos em flor,
de tesão à flor da pele, da premência do desejo
sobre qualquer outro instinto. Nesta parte, Krohmer filma muito
bem seus personagens, e com isso permite que se instale um quadro
curioso (embora um tanto esquemático) de adultos travados
e jovens tranquilos com suas sexualidades. É uma parte
quase toda dominada pela presença na tela de Martina Gedeck
(a mãe da família, e a que mais é movida
pelo jogo dos personagens à sua volta) e pela palavra "verão"
do título, que se significa algo para nós nos trópicos,
tem seu sentido multiplicado nos climas temperados europeus. É
quando, obviamente em se tratando do sempre puritano cinema alemão,
incide a tragédia sobre os personagens - e a punição
à deflagradora dos desejos. É aí que começa
a parte "2004" do filme, não por alguma referência
específica ao ano, mas por colocar a história no
passado, ou seja, dentro de um contexto já revisionista
para os próprios personagens. Neste contexto, ao final,
Krohmer tenta ainda mostrar algo de positivo na tragédia,
algo de construtor na destruição - mas o fato é
que não cola. E um filme que marca pela energia inicial
se perde na culpa e na espiação posteriores. Tipicamente
alemão.
Viva
Livre ou Morra (Live Free or Die),
de Gregg Kavet e Andy Rubin (EUA, 2006)
por Eduardo Valente
Em
meio à enormidade de filmes desconhecidos no cardápio
da Mostra, por que escolher este? No meu caso, a resposta está
na biografia dos diretores: ex-roteiristas e colaboradores próximos
da série Seinfeld, um dos grandes programas cômicos
da história da TV americana. Claro que com estes antecedentes,
esperávamos algumas risadas cáusticas e irônicas
do filme, e isso ele nos dará aos montes. Mas, Kavet e
Rubin demonstram uma sensibilidade apurada para um dos problemas
que acometem vários artistas que vêm das comédias
curtas de TV: conseguem escrever um roteiro que, ao mesmo tempo,
adequa sua trama à duração do longa-metragem,
e se sustenta para além de piadas isoladas. De fato, na
medida em que vai construindo seus personagens e trama, Viva
Livre ou Morra vai deixando cada vez mais o registro da comédia
pura e simples, e vai adquirindo tons um tanto melancólicos
no seu retrato da vida de alguns personagens da pequena América
pobre e pouco vista dos estados periféricos (não
por acaso o New Hampshire daqui lembra em muitos pontos o Minnesota
de Fargo). O resultado final é um filme eventualmente
desigual, mas inegavelmente cheio de qualidades, principalmente
no seu elenco (destaque para a composição de Legrand
por Paul Schneider, no tom certo entre o humor rasgado de tiques
e o desenho de personagem) e na sutileza de seus diálogos.
Voltando ao Passado (We
Go Way Back),
de Lynn Shelton (EUA, 2006)
por Eduardo Valente
O
começo de Voltando ao Passado nos deixa vagar um
pouco entre duas matrizes claramente importantes para sua diretora:
o cinema indie americano, de onde parece vir sua jovem
personagem principal em dilemas geracionais e profissionais, e
um certo cinema do corpo, que tenta acompanhar sem muitas tramas
(e traumas) a rotina desta mulher, com os amigos, a peça
de teatro onde interpreta uma personagem que precisa falar norueguês
(embora ela nunca tenha falado a língua), os encontros
sexuais com alguns homens diferentes. Se temos a feliz surpresa
de ver o filme fugindo do pior da fórmula indie
(o cinema "câmera digital na mão investiga traumas
de família"), por outro lado o filme não traz
do cinema do corpo uma intimidade grande com a filmagem de espaços
físicos, e sua relação com os personagens.
É uma primeira metade de filme em que olhamos com atenção
para um esforço de apreensão do mundo com alguns
acertos (especialmente os entrechos mais cômicos na montagem
da peça de teatro), e outros tantos equívocos (o
sexo parece sempre filmado como "problema", as inserções
do passado da personagem através de cartas que ela escrevia
para ela mesma aos 13 anos). No entanto, na sua parte final, o
filme resolve assumir um risco maior, e incorporar um certo elemento
"sobrenatural" ao seu argumento, e aí ele vai
se desmantelando por completo até o final. Porque o fato
é que a inserção da simutaneidade temporal
da Kate de 13 anos no mundo da Kate de 23 anos pediria justamente
aquilo que o filme menos tem: habilidade e sutileza no manejo
da linguagem cinematográfica. Por isso, tudo que envolve
esta opção resvala no constrangedor, até
a incrivelmente despropositada sequência na fazenda. E de
repente um filme derivativo mas simpático se torna uma
experiência à beira do insuportável, com seus
planos de uma indigência quase absoluta, cheia de "desfoques"
e planos-detalhe que são o banal do banal para tentar dar
uma idéia de "sensibilidade". Ao final, a única
vontade do espectador é voltar ao passado e não
ter precisado assistir o filme todo.
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