A Rainha (The Queen), de Stephen
Frears (Inglaterra, 2006) por Cléber Eduardo
Stephen Frears, assumindo-se clássico Como
dar imagens a situações e pessoas contemporâneas? No que se basear, com mínimo
de confiança e credibilidade, para reproduzir conversas? Ou mesmo emoções? Deixemos
de lado por um momento as apostas no Oscar e tentemos nos deter na operação de
A Rainha. Em primeiro lugar, temos lá duas celebridades políticas, a rainha
Elizabeth II e o primeiro ministro Tony Blair. Duas imagens de poder na Inglaterra,
ainda agora, com o filme em exibição, o que traz uma série de complicações – ainda
mais quando a relação entre eles se dá em um contexto conturbado (os dias posteriores
à morte da princesa Diana), que expõe os limites de cada um em seus postos de
comando. A liberdade é completa em nome da representação? Imaginemos, apenas a
título de hipótese para se vislumbrar o campo minado no qual Stephen Frears adentra,
uma ficção no Brasil sobre as relações entre Lula e José Dirceu. Buemba, como
diria José Simão. Stephen Frears pegou informações de todos
os lados, de livros a pessoas próximas à Família Real, para criar sua versão,
que, pela força midiática e massiva., será a versão popular, independentemente
de alguns historiadores e analistas políticos questionarem o clima de estado de
alerta criado pelo filme. Frears deu imagem ao que nasceu da imagem (a morte de
Diana seguida por paparazzi em motos), mas, que, ironicamente, ficaria
sem imagem na História (os bastidores da preparação do enterro). Portanto, sua
função, acima de tudo, é de imagetizar o privado. Tem algo de bisbilhotice e invencionice
em suas especulações encenadas como fatos ocorridos. Isso
significa que Frears, cineasta também inglês, lida com o real, mas na chave da
ficção, justamente para criar narrativas, mitos, mesmo com aparente desmistificação.
Ao penetrar na intimidade de Elizabeth e Blair, ao nos dar deles um pouco de cotidiano,
de banalidade, de interioridade e de significado histórico (nesse momento da História
na Inglaterra), Frears tem de “supor”, criar diálogos, inventar situações, construir
personagens coerentes, carismáticos e cativantes (como são Blair e Elizabeth II),
expor as tensões palacianas, o lado familiar dos líderes de Estado e o sentido
político dessas situações, de modo a elaborar uma narrativa dramática de cinema.
Por isso, a crise ali é menos nacional, de Estado, e mais em nível pessoal: de
uma avó, de uma personagem, que, naquele momento, não sabe mais qual a coisa certa
a fazer diante da fronteira entre o público e o privado. O
público e o privado. Frears não vê limites, em seu filme, entre as duas instâncias,
dando-nos o privado dessas figuras públicas: ora mostrando-as como patéticas,
ora como carismáticas, sempre como simpáticas e de boas intenções, eventualmente
como fantoches cômicos. Na primeira seqüência de A Rainha, vemos a imagem
de Blair em um noticiário político onde é consagrado como o mais novo primeiro
ministro inglês, uma novidade, sopro de contemporaneidade. Quem assiste essa imagem
do homem público-midiático é Elizabeth, símbolo de tradição e reclusão, uma mulher
de outro tempo, com o ar ensimesmado com a possibilidade de mudanças à frente.
Blair é o público; Elizabeth, o privado. Ele é a imagem. Ela, a pré-modernidade.
Ela é do tempo em que só precisa existir para ser: seu poder emana de Deus; de
uma lógica "superior". Ele é de um tempo em que não se existe sem imagem:
seu poder emana de sua performance; do espetáculo. A Rainha no fundo trata
de como cada uma de suas forças políticas lidam com a imagem. Será necessário
aparecer em público, tornar-se uma imagem (e não apenas um símbolo), para a rainha
acalmar a pátria O que está em jogo, em última instância,
é um movimento histórico, cultural, que enferruja valores antes sagrados. No mundo
da imagem, do qual Lady Di e Blair são produtos e vítimas (ela, literalmente),
a rainha insiste na discrição. E será tido como avanço sua concessão à produção
de um evento cultural midiático (o enterro de Diana), um ritual para virar imagem
e ser consumida – algo necessário, segundo a perspectiva do marketing político
de Blair, sem o que a tradição, paradoxalmente, estaria ameaçada, justamente por
não produzir uma imagem para seus rituais e fazer deles mitos imagéticos. Frears
é francamente favorável ao simbolismo modernizador de Blair, embora nem se atreva
a questionar a manutenção da monarquia – um traço identitário e do imaginário
inglês. Não deixa de ser interessante que a tradição e a
modernidade, de certa maneira, também esteja presente na própria trajetória da
filmografia de Frears. Aparentemente um desdobramento do Free Cinema nos anos
70/80, depois de Ligações Perigosas ele encaminhou-se para um cinema que,
se não chegava a ser aliado à tradição clássica, tinha consciência dela (Herói
por Acidente), dependendo, em alguns momentos, de uma orquestração maiúscula
de produção (Mary Reilly), com um ou outro momento de produção controladamente
“free” (A Van, Alta Fidelidade). A Rainha é seu filme mais
assumidamente clássico: se existem momentos claramente pensados para terem efeito
de show cênico, esses efeitos jamais desnudam a operação de mise-en-scéne
empregada para obtê-los, criando uma transparência narrativa que permite a caligrafia
visual personalizada, com assinatura, sem perder a transparência. Não
é apenas nos diálogos que encontraremos o humor, mas, também e justamente, na
decisão de se filmar determinadas expressões, de se cortar no momento preciso
de chamar outro plano, que completa o humor construído no plano anterior. Helen
Mirren não brilha em si mesmo com sua impressionante economia de recursos, mas
graças a uma mise-en-scène consciente de como deseja filmar a atriz, de
qual ângulo mais adequado para potenciar a sutileza da interpretação, para tornar
grande e grave o que é da ordem do minimalismo, para mostrar como o corpo, os
gestos, a maneira de sentar e de caminhar, em suas sutilezas, constroem uma mentalidade
e uma cultura. Nenhuma dessas características de uma composição de atriz viriam
à tela se o diretor não escolhesse os ângulos mais fortes para valorizar a composição.
Coube a Frears, então, em seu filme de maturidade narrativa, essa tarefa de “mestre
de cena”. editoria@revistacinetica.com.br
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