Tio Boonmee que Pode Recordar Suas Vidas Passadas
(Loong Boonmee raleuk chat), de Apichatpong Weerasethakul
(Tailândia/Inglaterra/França/Alemanha/Espanha/Holanda,2010)

por Juliano Gomes

Cinema, político

Tio Boonmee... é um filme sobre o cinema. Sobre que relação podemos estabelecer com as imagens e sobre que relação podemos estabelecer com o outro. Essas coisas andam juntas. O cinema de Apichatpong "Joe" Weerasethakul consegue, mais uma vez, uma clareza absoluta de sua matéria, de seu "tema", preservando-lhe todo o mistério. A idéia de cinema se desdobra, se transmuta em várias, e é esse o processo central da obra de Joe: a transmutação, a destruição e a transformação. Se for possível identificar um grande tema em toda sua obra, sem dúvida este é o terreno.

Primeiro, as vidas passadas. O que vem a ser um fantasma? Um fantasma é, antes de tudo, uma imagem. De algo que era do passado, mas que se apresenta, como imagem, no presente. É a imagem de uma ausência, de alguém que já morreu. É a presença de uma ausência, como imagem. E não é isto uma definição de uma imagem? Uma manifestação visível da ausência da coisa. Visível porque é luz, é luz no tempo. Apichatpong não para de nos lembrar que o cinema é luz, é pulsação de luz (isto é, modulações de presença e ausência): no carro, na caverna, na casa, no enterro. Mas essa luz não foi inventada pelo cinema, ela é natural, sempre existiu.

Todo o trajeto de filme se baseia em fazer estas comparações das fontes de luz mais diversas (como faz explicitamente seu curta Phantoms of Nabua, que faz parte do mesmo projeto "Primitive" do qual Tio Boonmee é a obra final). É a mesma luz, desde sempre, mas ela é sempre diferente, em cada aparição. Assim funcionam as transformações para Joe: sempre o mesmo, sempre diferente. A luz é a mesma desde que existe sol, desde as primeiras fogueiras onde nos reunimos para ouvir histórias (não por acaso há hieróglifos na caverna), dos neons aos pisca-piscas de natal, como mostra também a cena do enterro de Boonmee. São somente diferentes encarnações da luz. Tio Boonmee faz delas um grande inventário, combinando-as numa mesma cena, na casa, ou iluminando uma cachoeira com luzes nada naturais, estudando todas as suas variações.

O filme resgata esse deslumbramento primitivo, muito anterior ao cinema, esse prazer primeiro da dilatação da pupila, fascínio ancestral que o fogo, os refletores, os raios, os LEDS e o sol, e todas as formas de pulsação da luz nunca deixarão de exercer sobre nós. Tio Boonme é também sobre esse poder que uma lâmpada exerce nos bebês e nos insetos, por exemplo, um magnetismo que nos atrai para a luz, seja a da lâmpada ou a dos fogos de artifício. A caverna, lugar onde Boonmee vai para morrer, é o lugar da fogueira dos antepassados, mas é também o lugar das imagens. Ambiente escuro, onde os homens fazem e assistem a luzes e imagens. A caverna é o primeiro cinema. Onde se vai para morrer. Não por acaso, uma das imagens mais recorrentes da morte é a de uma grande luz que aparece para nós, no momento em que "assistimos toda nossa vida passando, como um filme". Uma luz que se dirige aos nossos olhos na sala, nesse lugar escuro, onde permanecemos imóveis como que sob uma magia, um feitiço, um grande caixão coletivo.

Cova onde nos esquecemos e, nos melhores casos, como esse aqui em questão, voltamos transformados, renascidos, após sermos expostos à luz. Numa das paredes dessa cova, estão as imagens, sempre novas e compartilhadas. Boonsong, que não por acaso se parece com o Chewbaca de Guerra nas Estrelas, se tornou o que perseguia na imagem, se transformou nela, mas não completamente. Numa alusão clara a Blow Up (que tem cena recriada em uma das fotografias que aparece no filme), de Antonioni, ele procura desvendar o mistério da imagem e é tragado para dentro dela, se funde e copula com sua imagem, e assim se transforma. É um macaco-fantasma mas ainda é Boonsong. Rapidamente, sua família o reconhece. Agora, ele precisa da escuridão para ver, virou um ser da noite, que só aparece quando está escuro, essencialmente, assim como um fantasma: um ser da sala de cinema.

Se um gorila e uma fantasma são somente imagem, não se trata aqui do regime do puro simulacro, pois a questão é enxergar o mundo como um conjunto infinito de imagens, onde nós somos imagens entre outras, e o cinema e a percepção só fazem montá-las. Nesse sentido, esta é a idéia de igualdade radical que permeia o trabalho de Joe: uma indiferença absoluta a tudo que mostra, aliada a uma ternura profunda a todos os elementos que habitam a tela. Igualdade como ponto de partida e não como fim. Não se deseja, aqui, construí-la; ela é a premissa para que o filme exista para que possamos nos relacionar com ele. O "primitivo" (que, de novo, dá nome ao projeto do qual o filme faz parte) é essa condição que esquecemos. Não se trata de uma evolução, mas uma espécie de involução, em direção ao encanto dos bebês e dos insetos, estado de fascinação com o mundo como manifestação, de deleite sensorial de tudo que chega aos nossos sentidos, que por natureza, não tem hierarquia.

* * *

Tio Boonmee é um filme político. Pois suas operações nunca são de fusão, de aniquilamento, de transformação de dois em um. As transformações que vemos, da luz, do cinema, das vidas, dos seres, das encarnações, são sempre mantendo o "mais de um". Não se trata aqui de se identificar, de se tornar o outro. Uma encarnação é ser o mesmo e ser diferente: cada vida passada é uma outra vida, nunca é a mesma, tem que ser vivida novamente. A figura do duplo, que permeia grande parte da sua obra, é uma manifestação disso, dessa insistência em que haja sempre dois, que nunca se transformem em um só, e que achem uma forma se relacionar mas de se manter separados. A vida passada ocorre no presente, assim como o cinema: ela é o passado, mostra o que aconteceu, mas esse mostrar só pode acontecer no presente. É uma combinação dos dois, só assim pode sê-lo.

Há sempre embate, um encontro muitas vezes violento (como por exemplo a transa da princesa com o bagre, que o som quase transforma numa cena de terror), que invariavelmente leva à morte, pois ele tem que gerar transformação, seja ela qual for. Uma política da convivência. Convivência entre tempos e criaturas quaisquer, onde qualquer uma pode sempre entrar - como uma casa no mato cheia de portas e janelas -, e sempre que chega pode reconfigurar o todo. Uma convivência entre homens, fantasmas, macacos, bagres, insetos, passado, presente, imigrantes, fazendeiros e comunistas. Se Joe quer destruir a linha que divide o homem dos outros seres, é para estabelecer um mesmo patamar, a tal igualdade como condição - mas que adquire sua força justamente na diferenciação entre cada coisa, na sua singularidade. Apichatpong escolhe Nabua, floresta onde vários comunistas foram mortos (também por fazendeiros como Boonmee), para criar novas memórias para aquele lugar. Os elementos pop só ressaltam essa importância de uma memória compartilhada que é, absolutamente, uma criação. A memória é impura, externa: vem do cinema, vem do que nos contam, vem dos nossos sonhos. Ela é o resultado do contato entre várias imagens. A política da imagem em jogo aqui, da maneira mais direta possível, quer criar memória num espaço que é do trauma, numa floresta cheia de memórias trágicas.

(Não por acaso, Apichatpong quase não consegue viajar para Cannes, onde receberia a Palma de Ouro. Os motivos são diferentes da caça aos comunistas na áreas rurais ocorridas também em Nabua dos anos 60 aos 80, mas os atores são exatamente os mesmos).

LebanonTio Boonmee é uma afirmação do poder de transformação, de que toda destruição, toda morte, leva a um outro estado. Há sempre algo novo a nascer (a imagem mais clara disso são os garotos fardados do futuro, numa imagem que sintetiza com grande potência esse embate direto entre o passado e o futuro). Nesse futuro, há algo que quebra o regime instalado no filme: há uma autoridade. Ela faz o outro desaparecer a partir da projeção de uma imagem, uma luz que aniquila, pois projeta em cima da pessoa todas as imagens dela mesma, do passado até aquele momento. Então, ela some. Trata-se do processo de fusão, onde uma imagem coincide com seu destino, onde há identificação absoluta e isso é mortal, pois não é possível haver "dois".

Algo, então, se perde. É só havendo mais de um que se pode estabelecer uma relação, mesmo que o segundo seja uma outra aparição do mesmo, como no final do filme. Se há mais de um, há algo que se possa trocar, há algo que se possa transformar, seja em um boi, um peixe ou um feixe de luz. A cada obra de Apichatpong Weerasethakul, a sensação que temos é de que é preciso voltar ainda mais atrás; é preciso esquecer para poder começar de novo. Seu desejo pelo primitivo é a fome de um olhar que precisa se renovar regredindo, sabendo menos - um pouco como no primeiro cinema, um pouco como nos filmes de Warhol, Ozu ou Eustache. O cinema nos tornou novamente homens das cavernas. Lá nascemos de novo, nesse ambiente ao mesmo tempo de aparição e desaparição, assim como o faz Tio Boonmee. Talvez como homem, como mulher, ou como animal. E dificilmente há um outro artista hoje que consiga renovar essa sensação de frescor, de renascimento a cada capítulo de sua imensa obra, como Joe.

Outubro de 2010

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