in loco - mostra de tiradentes 2009
Dos golpes e seus impactos
por Fábio Andrade
É
bastante conhecida a máxima do escritor argentino Júlio Cortazar de que o romance
pode ganhar o leitor por pontos, mas o conto precisa do nocaute. A afirmação é
um tanto óbvia, seu paralelo com o cinema também, e a percepção dessa limitação
– palavra usada, aqui, sem qualquer sentido pejorativo – é aguda na relação com
esse amplo conjunto de filmes de curta duração. A crítica, sendo atenta ao "por
em crise" que lhe é radical, surge a partir desse pressuposto, onde a contagem
final – tão consciente nesse conjunto de filmes – não é a questão. Olhemos, portanto,
para os golpes.A seleção de curtas metragens feita para
a 12a Mostra de Tiradentes deixou evidente, mesmo que nas entrelinhas, uma tendência
que já começava a se delinear no acompanhamento (ainda que intermitente) das sessões
da última Curta Cinema, no final de 2008. Como dado macro de aproximação, é comum
a vários desses filmes a partida de uma característica estrutural mais cara ao
universo do videoclipe. Estrutural, sim, pois ela não diz respeito a um determinado
efeito estético mais comumente associado ao formato, que, na verdade, é estilo
de uma corrente bem delimitada dentro da produção de clipes musicais (algo que,
dentro da Mostra, encontramos nos longas de José Eduardo Belmonte). Aqui, interessa
a maneira que o videoclipe consolidou de usar a imagem como um desdobramento estético
a partir de um conceito que lhe é anterior – algo que parece ter atingido o nível
máximo de banalização em Debajo, curta chileno de Dominga Sotomayor Castillo
com menção honrosa no Curta Cinema 2008, que se limita a observar uma situação
decupada sempre em plongée, em uma fidelidade surda à câmera-conceito,
que ignora a necessidade do plano individual em nome de algo que é exterior à
diegese (seu título). Essa
tendência videoclípica, quiçá publicitária, de transformar uma idéia (ou, em linguagem
mais popular e precisa, uma "sacada") em imagem tem, em Tiradentes,
o exemplo mais raso de Engano, filme de Cavi Borges que simplifica ao paralelizar,
sem grande efeito, a estrutura circular do clipe de Michel Gondry para "Sugar
Water", da banda Cibo Matto. Mais importante do que a relação estabelecida
entre as duas personagens (e Engano se supõe um filme narrativo) é separá-las
em planos-sequência paralelos, com um cruzamento de quadros ao fim (a moça termina
invadindo o quadro do rapaz, e vice-versa) que só faz chamar atenção para uma
suposta jóia criativa motivadora do filme. A rigor, essa mudança de eixo gera
uma distorção, pois tira o foco do "durante", e reduz a experiência
a um entendimento que é ou anterior (pensemos na brincadeira brechtiana em Dogville,
de Lars Von Trier) ou póstumo (Amnésia, de Christopher Nolan), fazendo
do filme um recheio para essa casca conceitual. Se a ausência
total de um conceito é, por sua vez, uma inconsequência, a redução de um filme
a um conceito filmado me parece – se não mais grave, por se encastelar como rigor
– igualmente problemática. Problemas, porém, não são necessariamente negativos;
a questão é a maneira como cada realizador lida com os seus. Confessionário,
de Leonardo Sette, parte, intencionalmente ou não, de matriz semelhante a outro
monumental filme-conceito: Fengming: Memórias de uma Chinesa, de Wang Bing.
Ambos são movidos por um interesse igualmente intenso pelo ritmo de fala de uma
personagem (posição política, no filme de Bing; perspectivação histórica, em Leonardo
Sette) confrontado às particularidades técnicas dos meios de registro dessa fala
(a interrupção para acender as luzes, em Fengming; e trocar a fita, em
Confessionário). São
filmes que, nessa negociação entre generosidade e limitação, apontam para uma
relação com o espectador e o próprio cinema que está além da estabelecida diretamente
com o filme, se inserindo em uma discussão sobre a própria natureza do registro
documental. O diferencial é que, assim como em Ocidente, seu filme anterior,
Sette promove uma dialética entre filme e título, palavra e grafismo, imagem e
texto – característica, aliás, bastante forte e peculiar de suas realizações.
Em Ocidente, a banalidade cotidiana das imagens se expandia no encontro
com uma palavra misteriosa, em prisma que multiplicava a força do filme em um
sem-número de desvios. Já em Confessionário, o realizador incorpora a interpretação
de sua própria obra, mas reduz, com isso, o potencial autônomo do filme – fascinante
em seu curta anterior – a uma dialética semelhante à encontrada nas manifestações
plásticas que Jacques Rancière trata, em A Política da Arte, como arte
lúdica: temos dois ou mais signos (aqui, o filme e seu título) que produzem uma
série de sentidos a partir do vai-e-vem retroalimentativo dessa ordem de leituras
e seus limites semânticos. Citando Rancière: "O dispositivo artístico vive,
assim, da indecidibilidade de seu mecanismo e de seu efeito". Por
caminhos variantes, outros curtas esbarram em paredes semelhantes. Isso se dá
tanto em graus mais brandos – como o split screen nos créditos finais que
revela a técnica empregada em Dossiê Rê Bordosa, de César Cabral; ou a
solidificação da imagem cinematográfica em El Pintor Tira el Cine a la Basura,
de Cao Guimarães – quanto mais dominantes. É esse o caso de Dreznica, filme
de Anna Azevedo que contrapõe imagens de super 8 não exatamente fortes, mas com
toda sua carga de significado agregado (aquela poeira granulada e dessaturada
das imagens memoriais), a depoimentos de cegos; ou, em procedimento semelhante,
a exuberância das imagens de Paschoal Samora em Mar de Dentro que, dessincronizadas
das falas na banda sonora, tentam captar o fascínio pelo mar dos depoentes. São
trabalhos que, com pretensões muito diversas, acabam se aproximando da gag
estrutural de Os Filmes Que Não Fiz, de Gilberto Scarpa: filmes
que, a despeito de suas diferenças, parecem acreditar no conceito e na estrutura
como uma nova pegadinha, uma nova virada de roteiro que, ao fim e ao cabo, fazem
os filmes, em si, se tornarem secundários às idéias que os alimentam. Nesse
sentido, é interessante que alguns diretores que trabalham em chaves semelhantes
alcancem resultados muito mais ricos. Em Luz Industrial Mágica, de Kléber
Mendonça Filho, o dispositivo (contracampos específicos de ações captadas em festivais
de cinema pelo mundo) fica evidente logo nos primeiros segundos de filme, e é
bom que seja assim, pois a relação que o espectador estabelecerá se dará exclusivamente
pela força das imagens. São esses, também, os casos de outros dois dos melhores
curtas exibidos em Tiradentes (e poderíamos, aqui, também incluir o jogo de projeções
de Superbarroco, de Renata Pinheiro): Booker Pittman (foto ao lado),
cinebiografia do jazzista homônimo encenada por Rodrigo Grotta; e Nem Marcha
Nem Chouta, de Helvécio Marins Jr. Ambos partem de dispositivos muito claros
(em um, a dramatização livre; no outro, a relação entre documentarista e personagem
como um duelo de olhares), mas usam esses conceitos como extracampo que se somam
a imagens por si só suficientes em força expressiva. É o salto do cinema de gabinete
para a realização, em si. Se, com exceção de Engano,
os filmes citados até aqui partem de uma relação mais ou menos clara com o
documentário, é da ficção mais estrita que as soluções parecem transbordar. Basicamente
por, na ficção, esse tipo de recurso se despir como puro artifício, sem os disfarces
da ética e da reflexão metalinguística que muitas vezes embaçam a seara documental.
Não
à toa, o melhor dos curtas exibidos nessa última Mostra de Tiradentes parte de
uma relação direta, e de vigor um tanto raro no panorama brasileiro, com a decupagem
narrativa: N. 27, de Marcelo Lordello (foto ao lado), um dos mais eloquentes
filmes sobre violência realizados no Brasil recente. Além de impressionar pela
sofisticação e precisão de criação a partir de elementos básicos da linguagem
cinematográfica (lentes; velocidade de filmagem; relação da câmera com os espaços
e os atores; duração), o filme de Lordello se insere como resposta direta ao problema
endereçado na primeira metade do texto: usar uma idéia (no caso de N. 27, uma
situação) como premissa, e não como fim, para gerar uma bolha de tensões entre
a câmera e o universo filmado. A essa resposta, fazem coro outros filmes de interesse,
quando não pela força da mise-en-scène (Os Sapatos de Aristeu, de
René Guerra; O Dia Em Que Não Matei Bertrand, de L.C. Oliveira Junior e
Ives Rosenfeld; e Corpo no Céu, de Luisa Marques), pela fidelidade afetiva
aos seus personagens (Eu e Crocodilos, de Marcela Arantes; ou Cidade
Vazia, de Cássio Pereira dos Santos), muitas vezes centrados na adolescência
- recorte bastante negligenciado na produção em longa metragem, mas olhado com
muita generosidade nos curtas. Para além desse recorte e
de possíveis exemplos mais anêmicos dessa relação, saltam poucos filmes em posição
estrangeira nesse grupo, partindo de um interesse bastante raro pela equivalência
entre a plasticidade das imagens e a significação dos elementos em cena. Nesse
sentido, os dois mais fortes seriam Muro, de Tião (foto abaixo), e Passos
No Silêncio, de Guto Parente. São filmes que não tentam estetizar um discurso
(ou discursar sobre a estética), mas sim buscar uma equivalência entre as
duas instâncias. Essa
equivalência é surpreendente não só pela competência dos realizadores em chafurdarem
um universo ficcional/simbólico/discursivo bastante hermético sem perderem o fôlego
no processo (no caso do filme de Parente, o oposto inverso – mais interessante
quanto mais se aprofunda em sua própria solidão), mas principalmente por serem
exceções alvissareiras em um universo cinematográfico historicamente dependente
de suas personagens. Nesses dois filmes, a tendência percebida nos primeiros parágrafos
não é respondida com uma contra-proposta que a contorne (como no parágrafo anterior),
mas sim pelo confronto direto: são, ambos, filmes que partem de conceitos previamente
determinados, mas que, pela determinação em pensar cada imagem como um choque
estético particular dentro dessa estrutura-mãe, nunca se reduzem a conceitos filmados. Fevereiro
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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