in loco - mostra de tiradentes 2009
Sétimo dia: Segura distância
por Rodrigo de Oliveira
As
Iracemas, de Alexandre Pires Cavalcanti
As
Iracemas começa com uma epígrafe atribuída a José
de Alencar, escrita em letras brancas sobre fundo preto, que nos diz que “a tradição
oral é uma fonte de história, às vezes a mais pura e verdadeira”. Não é o caso
de duvidar do autor, atado demais a uma época em que se podia dizer este tipo
de coisa impunemente, mas o que exatamente Alexandre Pires Cavalcanti quer projetar
sobre seu filme quando lança uma sombra tão grande como esta logo de cara, antes
mesmo de nos apresentar ao universo das personagens do filme? Primeiro caso, a
tradição oral aí talvez se referisse ao próprio discurso fílmico, à própria construção
daquelas imagens como uma fonte de história (visual, mas marcada sim pela tradição
de um registro “que fala por si”), onde a observação do cotidiano de uma senhora
bem idosa e suas três filhas, isoladas no interior de Minas numa espécie de comunidade
autônoma e impenetrável, registro cheio de suas manias de imersão e do malfadado
“afeto”, tornaria aquele o modo mais puro e verdadeiro de se apresentar esta história.
Não é evidentemente o caso, e ainda poderíamos pensar que ao emular José de Alencar
o filme queira validar o absoluto do relato que acompanharemos dali para frente,
de uma família marcada pela tragédia de uma guerra civil – nas palavras de dona
Iracema, a mãe de todas. Um ataque policial no começo do século, cujos motivos
não sabemos ao certo e que nunca serão exatamente explicitados pela fabulação
da personagem, mas que vitimou a mãe de dona Iracema quando ela ainda tinha seis
anos de idade. Memória que, não fosse a presença do filme ali, talvez morresse
junto com ela. Muito nobre e muito humano que As Iracemas
já se auto-atribua este primado da preservação histórica, mas quando observamos
o filme, o relato do caso trágico ocupa uma única seqüência – importante e talvez
a mais viva e apaixonada de todas elas, mas ainda assim apenas uma. O que vemos
e ouvimos no seu entorno é um emaranhado de sons mais ou menos definíveis, mais
ou menos dignos de serem chamados de “tradição oral”, propriamente. Entre as quatro
mulheres existem dados fundamentais que condicionam sua vida e sua maneira de
se apresentar diante da câmera: algumas estão marcadas pela velhice avançada,
todas pela falta de uma educação formal no passado, e variando entre a mãe e a
filha mais nova, há em todos os casos uma patologia clara, com um ou dois dos
pés fincados na demência e na deficiência física. Isto torna todos os depoimentos
um tanto atravancados: a desarticulação às vezes é apenas das idéias, em outras
vezes uma dificuldade física em conseguir falar uma palavra compreensível, em
formular uma frase que nos soe coerente. Com o fantasma da epígrafe na cabeça,
é com uma ironia um tanto perversa que percebemos que ao filme talvez escape que
é da impureza, da impossibilidade fisiológica de uma verdade da “tradição oral”
entrecortada e nada fluente que vem o maior atrativo daquelas mulheres. Mas,
também muito cedo, As Iracemas deixará claro que, enquanto estratégia de
aproximação, é como uma comunidade de loucas que ele observa aquele coletivo.
Não há distância compreensiva ou respeito ao funcionamento natural daquela casa
que consiga esconder o interesse da câmera pelo exotismo de seus hábitos primitivos
(lava-se a louça numa bica com uma água preta que mais suja do que limpa as panelas),
dos diversos indícios de uma infantilidade irremediável (a história “verídica”
sobre uma mula-sem-cabeça contada pela irmã mais nova, aquela que aparenta sofrer
mais com a debilidade mental; ou a seqüência final em que toda a família se mobiliza
longamente em torno de uma velha boneca de corda que já não caminha mais). Não
conseguir se articular, não lembrar das histórias por inteiro, viver a confusão
da memória e da fala que não sabe se organizar, isso é algo que está presente
no discurso das próprias mulheres. Em diversas ocasiões, veremos as irmãs se debatendo
com suas limitações, vivendo-as na frente da câmera, às vezes em voz alta (momento
mais marcante talvez seja uma tentativa atrapalhada da filha mais velha de tocar
uma música na sanfona, momento que o diretor elege como metáfora desta marca da
incomunicabilidade e espalha por diversas seqüências do filme, reforçando o aspecto
quase jocoso com que As Iracemas perigosamente flerta neste contato). Ainda
assim, Cavalcanti opta sempre pelos panos quentes, e o filme nunca permite se
confrontar com esta questão que é tão definidora da vida daquelas pessoas – há
o deslumbre, a autocomplacência, e não mais que isso. Em determinada altura, uma
das filhas procura um objeto qualquer no meio de uma enorme bagunça de panos e
roupas, e toda a sua busca se dá com uma fala permanente e completamente ensimesmada.
Ela sabe que a câmera está ali, mas está conversando consigo mesma. Como nos depoimentos
que abrem o filme, onde vemos vizinhos daquela família contando pequenas anedotas
sobre seu isolamento e sua postura folclórica dentro da cidade, com a informação
de que aquele encastelamento talvez venha da educação rigorosíssima imposta pelos
pais das moças desde a infância, o que vemos nesta seqüência é a manifestação
clara deste universo próprio em que as Iracemas se instalaram e onde vivem com
alguma segurança. Ao mesmo tempo, a falta de sentido das palavras e a ignorância
da câmera como objeto que deseja a exposição reforça que há um limite dado, que
o acesso a este universo é regulado pelas próprias mulheres – e se couber ao registro
apenas esta disposição deslumbrada, ele não verá mais que a superfície, este mesmo
lugar onde os filmes se instalam por medo do embate com aquilo que de mais difícil
e perturbador se apresenta para eles. Ignorar a demência, a desarticulação, este
mundo de engrenagens tão intricadas quanto estarrecedoras, é onde As Iracemas
mostra a sua mais pura e verdadeira falta de idéias. Janeiro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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