in loco - mostra de tiradentes 2010
Oitavo dia: Das afecções por
Fábio Andrade
Esperando Telê,
de Rubens Rewald e Tales Ab’Sáber; e Pacific, de Marcelo Pedroso Esperando
Telê e Pacific compõem uma sessão dupla das mais estimulantes. São
ambos filmes que trabalham a partir de material de arquivo (no caso de Telê,
até mesmo as imagens produzidas pelos próprios diretores já podem ser chamadas
de arquivo, pois foram filmadas há mais de 15 anos), usando a montagem como instância
determinante dos sentidos dessas imagens, e das relações entre elas. Curiosamente,
os rumos completamente diferentes adotados pelos diretores levam a uma abordagem
semelhante: a montagem mais como regente de ritmos e de musicalidade do que produtora
de discursos literais, de uma dialética que se feche em si mesma. Esperando
Telê é um filme curioso por tudo que ele se torna
à revelia de seu projeto inicial. A princípio, talvez pudéssemos esperar um documentário
mais convencional sobre uma personagem (Telê Santana) e seu universo (o futebol);
mas, como indica o título, essa personagem não chega, e esse filme também não.
O que sobra é um estilhaçamento completo dessa figura e desse mundo (não é disparate
algum pensar em I’m Not There, de Todd Haynes), que resulta em um filme
de época: Esperando Telê é um filme sobre o Brasil em 1993-1994, perpassado
pelo futebol – pois não poderia ser diferente – mas não apenas debitário dele.
Sobrevivem, nas entrelinhas, o momento político, as mudanças de mentalidade e
de comportamento, a relação com as imagens, as roupas, as mudanças monetárias;
e é justamente daí que sai o filme mais interessante. Isso
se dá não exatamente pela implicação natural de todo filme ser um documento de
época, mas sim porque Rubens Rewald e Tales Ab’Sáber retomam esse material com
a consciência desse distanciamento, e percebem que, na ausência de Telê, existe
um mundo que gira ao seu redor, que é circunscrito por ele e, ao mesmo tempo,
determina a importância de seus gestos. Se Telê aparece, pelas imagens de televisão,
como um último bastião confiável da ética no futebol, é inevitável que tal impressão
reflita a era Collor, a descrença generalizada, e uma eventual mudança do futebol
de fé (Telê) para a administração funcional e fria da era Parreira. Esperando
Telê flagra o momento em que o Brasil começa a querer se profissionalizar.
Por
isso mesmo, é inevitável que o subtexto político do filme esteja justamente em
sua desigualdade: em época de busca pela profissionalização, Esperando Telê
é um monstro torto e mal ajambrado. Há muito de político nessa ação, embora
nem sempre ela funcione a favor da fruição – há longos clipes musicais de imagens
frequentemente inúteis, e desvios tão brutais (toda a parte sobre Pelé, por exemplo)
que por vezes parecem realmente perdidos dentro de um outro filme. Mas há algo
louvável nessa desobediência que usa uma personagem notável para falar tanto da
inabilidade de se chegar até ela (lembremos, mais uma vez, da obra de Todd Haynes),
quanto da percepção de que ela não pode existir fora de seu momento histórico,
com seus impulsos congelados, pairando sobre um tempo que não mais existe. A montagem
de Esperando Telê é uma montagem de afecções no sentido literal da palavra:
os sentidos se contaminam e se transformam, se espalham como uma doença não-diagnosticável,
destruindo o que restava do sujeito, mas dando origem a um novo organismo. Esse
processo é mais aleatório do que sistemático – o que fica claro na maneira como
os diretores preservam a estrutura de plano e contraplano dos programas de televisão
usados no filme, assimilando suas construções de personagens (os closes de Parreira
como vilão são extraordinários) quando elas parecem suficientemente fortes como
documentos a serem reavivados, mas digressionando sempre que a espiral começa
a girar em falso. Em Esperando Telê, o que fica de mais marcante é justamente
esse abraço torto do não-convencional, esse filme que realmente parece poder mudar
de rumo e olhar a qualquer momento, mas que conserva algo de autêntico, de fiel
ao espírito do filme e ao olhar dos diretores nessa autofagia. Já Pacific,
de Marcelo Pedroso, faz exatamente o movimento contrário. Pois se Rubens Rewald
e Tales Ab’Sáber partiam de um material aparentemente fechado, centrado em tema
e personagem específicos, para explodi-lo em diversas direções conflitantes, Marcelo
Pedroso tenta dar ordem ao aleatório, organizando afetos que não são do filme,
mas de maneira a se apropriar deles. Pacific é um filme realizado completamente
a partir de material externo, sem um plano sequer produzido para o filme. O procedimento
é simples: montar um longa metragem a partir de imagens realizadas, sem qualquer
finalidade extrínseca a elas, por passageiros de um cruzeiro de navio a Fernando
de Noronha. Marcelo Pedroso pede a eles esse material após ele já estar filmado,
e confere novos sentidos a imagens que não foram realizadas para o filme. Pacific
é um filme questionador já nesta primeira instância, pois seu dispositivo
é forte o suficiente para se tornar uma distração. É possível adorá-lo como síntese
ou rejeitá-lo como sintoma antes mesmo de o filme começar, mas ambas as leituras
(com todas as implicações de “estética”, “autoria”, “dispositivo”, “documento”,
“camadas” etc, que elas naturalmente geram – umas mais pertinentes que outras)
parecem insuficientes. Pois, muito como Moscou, de Eduardo Coutinho, o
que mais impressiona no filme de Marcelo Pedroso é justamente uma relação com
as imagens que só pode ser bruta, onde só é possível extrair um sentido se ele
for material. Importa menos, portanto, tudo que existe a partir do filme, e mais
o que existe dentro dele. Pacific tem seu fluxo determinado por esse relevo
interno das imagens, onde persiste o talento de Pedroso em perceber os caminhos,
as rimas, os ritmos que engendram os planos, e que possibilitam uma relação de
imersão no universo (físico e afetivo) que eles constroem. É
notável, portanto, que o filme transite em um caminho estreitíssimo onde o feelgood
nunca se torna celebração, o confinamento não é filmado como prisão (pois é voluntário),
e o retrato da alegria dos passageiros como obrigação social vem sem qualquer
ironia. Se há um humor latente em Pacific, ele vem de uma auto-paródia
que é incorporada pelas próprias personagens. O que persiste é um processo constante
de auto-fabulação das personagens para suas próprias câmeras (há planos de enorme
complexidade de mise en scéne dentro do filme; assim como há cortes que
acentuam ou produzem uma complexidade ainda maior) e uma aderência irrestrita
do filme a essas personagens, seus universos, seus sentimentos, seus desejos.
Em toda sua contemporaneidade, Pacific retoma uma das qualidades essenciais
e mais clássicas do cinema: criar um universo crível e transitável, e nos dar
a chance de realmente nos instalarmos nele por um determinado período de tempo. Janeiro
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