in loco - mostra de tiradentes 2011
Quinto dia: Pontes
quebradas
por Filipe Furtado
Remições
do Rio Negro, de Erlan Souza e Fernanda Bizarria (Brasil,
2010)
Logo
no começo de Remições do Rio Negro, a dupla de realizadores
do filme pede conselhos ao Padre Casemiro Beksta – salesiano que
participou das missões para educar índios as margens do Rio Negro
décadas atrás e serve como uma espécie de guia do filme –; pedem
dicas para melhor chegar até seus ex-alunos e o padre sugere que
eles tentem falar algumas palavras na língua deles. Está ali naquele
momento todo o abismo que o filme buscará de alguma forma cobrir:
afinal é impossível chegar a este outro sem que antes se pense
em alguma estratégia, e mesmo quando se tem as melhores intenções
há uma barreira intransponível por séculos de desajuste e exploração.
Nesse sentido, vale observar como as entrevistas colhidas por
Souza e Bizarria são duras e estéreis, não permitem ao espectador
a porta de entrada que ele espera dó documentário de entrevistas
pós-Eduardo Coutinho. Da mesma forma, as imagens filmadas por
Souza não escondem um amadorismo que aumenta a impressão de aspereza
do processo.
O aculturamento é uma relação de violência para
a qual não há panos quentes. Souza e Bizarria percorrem o Rio
Negro em busca de ex-alunos do Padre Casemiro. O que ouvem ali
tende a ser relatos muito duros, desprovidos de qualquer desejo
de conciliação. Não há, da parte dos índios, perdão possível para
a violência cultural dos padres, mesmo que os emissários em questão
cheguem com referencias de um padre que sempre demonstrou uma
curiosidade real pela cultura indígena. Numa das seqüências mais
fortes, um dos índios comenta sobre o ato de um dos padres vir
pedir perdão no leite de morte, e de como este arrependimento
tardio não serve de nada. O que move Remições do Rio Negro
é justamente uma necessidade, parte estética e parte moral, de
fazer a ponte entre estes índios e a figura do padre Casemiro
que mesmo distante em Manaus é o elo que liga a equipe de filmagem
aos seus entrevistados. È uma ponte impossível, condenada ao fracasso
a priori. Trata-se, portanto, de um filme-processo cujo
processo é fadado ao fracasso. É um processo enriquecido pela
relação que o filme estabelece com uma série de imagens de arquivo
(Casemiro é dono de um grande acervo) com imagens das missões
que expõe todo o discurso positivista do período e que são rearticuladas
com muita inteligência na montagem.
A parte final do filme é dominada por Pedro, o
único dos estudantes de Casemiro que os cineastas incluem no filme
que mantém uma relação forte de respeito pelo antigo mestre. Nas
seqüências finais, Souza e Bizarria arranjam o encontro entre
Pedro e Casemiro após 40 anos. Reunião emotiva, mas que não esconde
um estranhamento incômodo; um elemento não resolvido que ambas
as partes retraem, algo que fica muito evidente quando Casemiro
se levanta para buscar dois livros sobre questão indígena que
o seu ex-estudante pede emprestado, e a câmera fica por longo
tempo contemplando o rosto de Pedro. Rosto que não esconde que
a alegria de reencontrar Casemiro traz com ela também uma hesitação.
A ambivalência que Remições do Rio Negro nos causa brota
dali, seu valor esta eminentemente ligado ao seu fracasso.
* * *
Série 2 de curtas – Mostra Foco
Museu dos Corações Partidos,
de Inês Cardoso
Vó Maria, de Tomas Von der Osten
Canoa Quebrada,
de Guile Martins
O Menino que Colhia Cascas,
de Joacelio Batista
Balanços & Milkshakes,
de Erick Ricco e Fernando Mendes
Caos, de Fabio Baldo
O Plantador de Quiabos,
do Coletivo Santa Madeira
O segundo programa da seção competitiva de curtas
Foco foi marcado por filmes com dispositivos que buscam uma imagem
exata para representar um conceito de memória. O primeiro filme
exibido, Museu dos Corações Partidos, de Inês Cardoso,
reúne uma série de depoimentos via skype de pessoas cujas relações
amorosas se encerraram. Para ilustrá-los, busca uma série de imagens
de viagens entre o romântico e o melancólico que com freqüência
flertam com o clichê (por exemplo, imagens de Veneza ou de um
trem deixando a estação). É um equilíbrio difícil este que a realizadora
busca, nem sempre alcançando o tom exato, mas extraindo alguns
momentos fortes da relação depoimento/imaginário reproduzido na
tela. Canoa Quebrada, de Guile Martins tem um principio
mais narrativo: um jovem descobre tardiamente a identidade do
pai – um pastor evangélico – e viaja até o interior em busca de
confrontá-lo. Deste acerto de contas temos somente o áudio: nas
imagens vemos somente o jovem sozinho no seu quarto ou passeando
pela cidade como se o encontro fosse negado, sua representação
suprimida. É uma opção que exaspera o desacerto da relação central
do filme, e aumenta o tom de desentendimento dela mesmo que nunca
vejamos a figura do pai. É uma afirmação de um corpo enquanto
recusa-se outro. Vó Maria, de Tomás Von der Osten, tem
um dispositivo muito simples: uma mulher relembra a avó e depois
as duas gerações seguintes de mulheres da família retomam o que
também sabem sobre ela, enquanto as imagens partem de um olhar
abstrato sobre um retrato dela até sua visão total. É um conceito
simples, e não é exatamente uma surpresa quando chegamos à tataraneta
que sua relação com a personagem seja muito mais com o retrato
austero dependurado em alguma sala da família. Disso, porém Von
der Osten extrai com muita força o processo com que história família
sobrevive e se deteriora.
Ainda
num terreno próximo da memória, Balanços & Milkshakes,
de Erick Ricco e Fernando Mendes, é uma animação em rotoscopia
que retoma uma paixão adolescente. O encanto do filme é intimamente
ligado à forma como ele casa uma série de elementos que podem
ser vistos como esboços bem gerais (algo forte na narração) com
uma série de detalhes muito específicos. Nisto é muito feliz a
opção do filme por um processo em que se parte de uma filmagem
com atores para chegar à animação. Balanços & Milkshakes
– o próprio nome contendo significantes fortes para a pós-infância
– trabalha todo em função de preencher este esboço. É um filme
que potencializa o gesto, que encontra muita força naquele casal,
e cada pequeno movimento deles, que localiza ali um sensorial
e sensual. È curioso observar que os dois filmes mais fortes exibidos
na Foco (este e As Aventuras de Paulo Bruscky) serem justamente
duas animações com referente real muito forte que acabam potencializado
o corpo dos seus protagonistas de uma forma que não esperamos
do formato.
Regressando um pouco mais à infância O Menino
que Colhia Cascas, de Joacélio Batista, se estrutura como
um jogo entre o cineasta e seu jovem ator principal (que calha
em ser seu sobrinho, o que garante uma intimidade maior ao filme).
A câmera segue o garoto nas mais diversas atividades, circundando-o
e aos poucos se aproximando do seu universo e imaginário. Há um
clima crescente de horror, que já se sugere nas primeiras cenas
e se torna predominante quando a noite e chega e o filme parte
para seu movimento final. O Menino que Colhia Cascas
gira um pouco em falso nesta parte final, como se Batista
sublinhasse demais algo que já estava claro antes, mas nada que
lhe tire o fascínio. Força, aliás, que Caos, de Fabio Baldo,
busca o tempo todo, mas poucas vezes consegue alcançar. Assim
como O Menino que Colhia Cascas, é um filme sem diálogos
que acredita numa narrativa visual que se afirma de forma agressiva
(Baldo esta sempre a procura de imagens fortes), mas enquanto
Batista tem seu sobrinho para servir como escape e figura central,
Caos me parece transparecer a ausência de uma âncora que
o norteie.
Por
fim, O Plantador de Quiabos, assinado pelo Coletivo Santa
Madeira, é um filme de grande frescor. Com uma história simples
sobre o personagem titulo e sua necessidade de conseguir uma bicicleta
para o trabalho, o filme envolve com uma incrível fluidez e uma
economia enorme. Uma imagem leva naturalmente à seguinte. É um
curta de considerável imaginação que nos leva de volta a idéia
inicial tão presente nos dispositivos dos primeiros curtas, O
Plantador de Quiabos é um filme que sabe encontrar a imagem
exata a cada momento.
Janeiro de 2011
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