in loco - mostra de tiradentes 2011
Sexto dia: O olhar e a informação
por Filipe Furtado

Sertão Progresso, de Cristian Cancino (Brasil, 2011)

Sertão Progresso é um filme que lida com a obra de transposição do Rio São Francisco e as múltiplas questões que o tema levanta. Se ele tem um ponto de vista claro contra a obra, busca encontrar todos os agentes envolvidos para registrar seu ponto de vista. É um exercício dialético que insere bem as dificuldades de se lidar com a seca nordestina dentro de um processo histórica amplo. Nisso não deixa de ser o exato oposto de Cortina de Fumaça, de Rodrigo Mac Niven, exibido e comentado aqui no começo do festival. Cancino organiza seu filme como uma espécie de viagem, pela qual as questões do projeto vão se localizando.

No meio deste seu processo ele encontra algumas imagens de força, em especial uma manifestação do MST no qual os vários agentes tomam seus papeis e o cineasta no meio do caminho tem que decidir como mediá-los dentro da imagem. Neste momento, a situação coloca Cancino em cheque obriga-o a fazer uma escolha de olhar. È um momento raro dentro de Sertão Progresso em que um processo de escolhas é feito. Na maior parte do tempo, o filme se rende à ditadura da informação. Cancino é habilidoso e generoso em lidar com seus múltiplos ponto de vista, mas o limite da informação é muito claro. Desprovido de um olhar forte, os depoimentos de Sertão Progresso são simples dados que raramente chegam ao cinema. Os poucos momentos de real força que Cancino encontra ao longo do filme só reforçam como na maior parte do tempo sobra informação e falta cinema ao seu filme. Ele faz parte do Aurora aqui em Tiradentes, mas poderia muito bem estar na seleção do É Tudo Verdade – com tudo que isto tem de menos positivo.

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Série 3 de curtas – Mostra Foco
A Peruca de Aquiles, de Paulo Tiefenthaler
Fogo.Doc, de Leandro Andrade
O Hospede, de Anacã Agra e Ramon Porto Mota
Náufragos, de Gabriela Amaral Almeida e Matheus Rocha
Contagem, de Gabriel e Maurílio Martins
Praça Walt Disney, de Renata Pinheiro e Sergio Oliveira

O terceiro e último programa da Foco pode ser descrito como o programa pop da seleção, com uma ênfase especial num cuidado com caracterização inclusive nos filmes a principio desprovidos de personagens. Um tom que já fica muito claro no primeiro curta, A Peruca de Aquiles, de Paulo Tiefenthaler, uma típica ficção carioca – realizada para uma série do Canal Brasil – que se valoriza por uma cuidadosa atenção para detalhes e direção firme de atores. Tiefenthaler consegue instalar o filme muito bem dentro da sua situação e consegue dar-lhe um frescor inesperado na paisagem do nosso curta – o que por sinal foi o tom dominante do programa. Talvez em nenhum filme mais do que no ótimo Fogo.Doc, de Leandro Andrade. Aqui, o cineasta tem vista privilegiada para um incêndio no mercado municipal de Florianópolis e não só o registra, mas comenta tudo que de anódino acontecem no circo formado. Fogo.Doc é um filme orgulhosamente tosco, com Andrade mostrando enorme disposição para ser grosseiro, mas ao mesmo tempo é um dos filmes mais perceptivos exibidos nos três programas da competição de curtas, com seu diretor se mostrando tão capaz de lançar mão da piada mais óbvia, quanto no mesmo momento desconstruindo por completo o que filme.

O Hóspede, de Anacã Agra e Ramon Porto Mota, aposta numa adesão completa ao gênero. No caso, uma história de invasão alienígena passada em Campina Grande. O filme trabalha muito bem esta sua posição curiosa de ser uma ficção cientifica do sertão e é um filme que surpreende justamente por um desejo de ficção, de quem conhece muita coisa do gênero (os agradecimentos incluem um número bem variado de criadores ligados ao fantástico, não só no cinema), mas que não se interessa somente pelo próprio repertório. Há um achado muito grande entre a tensão da invasão alienígena representada pelo hóspede do título com as mensagens de rádio que sugerem o interesse dos americanos de tomarem o Brasil, e a posição do filme de ser uma apropriação de um imaginário específico numa paisagem inusitada.

Náufragos, de Gabriela Amaral Almeida e Matheus Rocha, aposta numa outra forma de imaginário, vinculado à sua personagem central, uma senhora de idade cuja solidão pode ou não estar afetando sua imaginação. Há um humor melancólico, entrelaçado com um sentimento de paranóia e várias escolhas que reforçam o desarranjo e estranhamento do cotidiano da protagonista (o vídeo de ginástica que passa na televisão é muito inspirado). Alguns detalhes muito exatos de comportamento, assim como imagens muito fortes (como a da tentativa de pescar a memória debaixo da cama) dão uma textura muito particular para esta aproximação.

Finalmente, os dois melhores filmes do programa, Contagem, de Gabriel e Maurílio Martins, e Praça Walt Disney, de Renata Pinheiro e Sergio Oliveira, exibem uma aposta muito clara numa idéia de cinema regional (não à toa ambos tem títulos que se referem a suas locações). Contagem parte de um roteiro elaborado com ação fragmentada, que sugeriria um multiplot manjado. Só que a experiência de vê-lo não poderia estar mais distante disso: filmado com grande vigor, o que torna Contagem um filme especial é algo a princípio primário – a relação da câmera com seus atores e espaço. Contagem encontra sua potência no corpo e no lugar: faz um retrato evocativo do seu bairro sem nunca declarar que este é seu objetivo, e tem um trabalho de composição de personagem a partir de tipos, inflexões e posturas muito raro (a presença de cena do ator Leo Pyrata, em especial, acrescenta ao filme um sabor especial). Contagem é um filme que chega às coisas e as vê. Por todo um repertório cinéfilo – que o filme inegavelmente tem – e narrativa elaborada, é esta postura tão simples que lhe torna um filme tão marcante e encantador.

Praça Walt Disney propõe um retrato de um dia em Boa Viagem no Recife, em especial os arredores da praça-título. É mais um dos vários filmes pernambucanos recentes marcados pela reurbanização da orla (como Avenida Brasília Formosa já mencionado aqui na cobertura), no caso através de uma comédia de observação, com ritmo à Jacques Tati. Há uma gag recorrente no filme, em que lugares específicos são sobrepostos a fotos antigas deles mesmo, e o filme todo funciona nesta chave: a câmera de Pinheiro e Oliveira localiza algo novo em cada um destes lugares, encontra um ponto de fuga para eles. O filme se reitera um pouco demais ao longo da duração explicitando suas operações em excesso, mas nunca perde este frescor de olhar. Contagem e Praça Walt Disney nos lembram que existe algo eminentemente político no simples ato de ver.

Janeiro de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


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