in loco - mostra de tiradentes 2011
Oitavo dia: De
personagens e seus lugares
por Filipe Furtado
Vigias, de Marcelo Lordello (Brasil, 2010)
Os
filmes exibidos no Cine Tenda no penúltimo dia da mostra tinham
em comum serem todos associados à idéia de “filme de personagem”.
No caso de Vigias, esta idéia já vem desde o título até
o processo de acompanhar uma noite de trabalho de uma série de
vigias noturnos de condomínios de Recife. Ao longo do filme, porém,
fica claro que o foco real de Marcelo Lordello
não está naquela série de vigias específicos, e mais numa cultura
de segurança que toma cada vez mais conta dos grandes condomínios
– não à toa, o próprio cineasta admite que não existiu
qualquer trabalho de pesquisa na escolha dos vigias: eles não
interessam como personagens, mas como instituição. Um pouco como
em
Avenida Brasília Formosa – outro “documentário
de personagens” recente de Recife, que inclusive divide com Vigias
o fotógrafo Ivo Lopes Araújo – os personagens existem como canal
para uma idéia. Os vigias noturnos de Vigias interessam
à sua câmera não pelo que revelam como personagens únicos, mas
por serem manifestações concretas de toda uma cultura de violência
e medo.
Nas
suas noites solitárias, mapeia-se não só a experiência individual
deles, mas toda a textura de um encastelamento fora de campo.
Parafraseando um deles, estes vigias são também guardas carcerários.
Desde a primeira entrevista, na qual um do vigias explica como
faz a checagem dos cadeados para garantir que tudo está devidamente
trancado, a idéia de prisão é reforçada. Portões figuram freqüentemente
na estratégia visual, assim como a imagem dos vigias a inspecionar
a rua e garantir que não há indivíduos suspeitos quando os donos
dos veículos chegarem. Todo o espaço externo à propriedade, em
Vigias, é uma ameaça potencial. A principal arma do filme
para circundar esta cultura é mesmo um trabalho apurado do fotógrafo
Ivo Lopes Araújo, que consegue nos colocar dentro do ritmo pesado
da longa noite de vigília. É um processo de filmar uma experiência,
mas é muito menos uma experiência individual e mais a experiência
de confrontar um espaço terrível. Não é acidental que a equipe
de filmagem tenha lugar privilegiado neste confronto: Vigias
é um registro da noite de desconforto desta equipe, muito mais
do que dos seus personagens. De certa forma, acompanhá-los noite
adentro obriga o cineasta e seus companheiros a confrontar os
significados do mesmo espaço em que muitos deles residem (na única
cena que uma moradora aparece, ela reconhece um membro da equipe
como parente de outro morador).
O filme logo completa o seu
ciclo, acompanhando um dos seus vigias na volta ao lar. É uma
seqüência final que inclui uma série de mudanças de estratégias
de aproximação (a luz natural do sol; uma montagem muito mais
rápida; uma câmera que segue o personagem com menos intrusão;
a música do Cidadão Instigado preenchendo o som, etc.) para acompanhar
uma mudança radical na política de espaço. Pela primeira vez o
filme respira, e é inevitável observar que isto acontece justamente
quando ele alcança o espaço externo visto até ali como lugar da
ameaça. Quando o vigia chega à sua casa, deixa a porta aberta
e vai buscar a esposa para apresentar para equipe na rua. Vigias
finalmente alcança
outra idéia de relação com espaço público e privado. É uma reconfiguração
sobretudo política, ao qual o filme pode só lançar um olhar estrangeiro
com certa inveja.
* * *
Riscado, de Gustavo Pizzi (Brasil, 2010)
Transeunte, de Eryk Rocha (Brasil, 2010)
Riscado e Transeunte são dois genuínos filmes de personagem, que retiram
toda a sua potência das relações que estabelecem com eles. Riscado
acompanha uma atriz que lida com uma série de questões financeiras
e profissionais enquanto ganha uma grande oportunidade de trabalho.
Já Transeunte acompanha um viúvo sem vida e sua relação
de distância e curiosidade desinteressada com o mundo. São dois
filmes calcados nos seus atores principais, Karine
Telles e Fernando Bezerra respectivamente, e no que eles emprestam
a seus respectivos cineastas (a alegria encantadora de Telles,
a carranca constante de Bezerra). São também filmes com opções
de aproximação opostas: Transeunte é um filme bastante
agressivo nas suas opções visuais, do trabalho de câmera e montagem
ao uso de preto e branco e de música; já Riscado busca
uma abordagem afetuosa através do seu elenco e de um ótimo trabalho
com locações e direção de arte.
Transeunte parte do apagamento completo do seu personagem até que ele preencha
aos poucos os fotogramas. Seu processo é de dar forma a um tecido
morto. O próprio filme nasce morto, e aos poucos ganha vida. É
uma proposta radical que confere a Transeunte considerável
irregularidade que nem sempre supera. O tom inquieto das imagens
sugere no começo do filme uma tentativa de compensar a si próprio.
Seu jogo com a cidade ecoa com interesse somente em momentos isolados.
Quando Bezerra vai à seresta e é reanimado, e se torna finalmente
um corpo que se move com direção, Transeunte encontra um
sentido maior, mesmo que suas opções sigam rigorosamente as mesmas.
O filme tem seus momentos mais felizes justamente quando as imagens
de Rocha vêm acompanhadas da trilha sonora, reconfirmando como
a proposta toda do filme passa por uma lógica de preenchimento
de cena. Transeunte tem a virtude de levar seu projeto
com completa convicção, mas é também prisioneiro dele; dentro
desta prisão estética, é inegável que encontre alguns momentos
de grande força.
Já Riscado faz um trajeto
quase oposto: o mundo é vibrante em todas as suas possibilidades,
até que o filme reconheça que isto não garante o sucesso na trajetória
da sua personagem. Ao contrario de Transeunte, no qual
Bezerra tem essencialmente duas interações diretas com outros
atores, Riscado impressiona com a caracterização da sua
fauna de personagens coadjuvantes. É um filme que se impregna
de um prazer especial de construção de mundo, que se entrega a
uma serie de pequenos universos (os filmes de Bianca; a produção
do longa francês; a companhia
de teatro; os bicos da personagem). Há uma capacidade de construir
pequenos mundos e se perder neles que é admirável, mas também
aponta para as fragilidades do filme, que por vezes insiste demais
no que não funciona (alguns momentos do teatro, a visita ao apartamento
da proprietária, etc.). A grande força do filme reside na habilidade
com que Pizzi equilibra
estes vários universos que Karine
Telles ancora.
Riscado é um filme de personagem agressivamente ficcional, o que contrasta
muito com o contexto das estratégias de aproximação com personagem
em voga no cinema contemporâneo, que encontra mais vazão num festival
como o de Tiradentes. Pensemos principalmente na ficção com personagens
que se auto-ficcionalizam,
popularizada por Lisandro Alonso e que encontra
em Tiradentes alguns representantes fortes como O
Céu Sobre os Ombros, Avenida
Brasilia Formosa e de certa forma mesmo o próprio
Vigias, que é um documentário mais puro. Não é um processo
muito diferente daquele que acontece com a personagem principal
de Riscado, com
uma diferença sutil que escancara a violência inerente ao processo:
Bianca é atriz, o gesto de atuar já é exclusivamente o que a define
(Riscado é admirável na forma que elimina tudo mais que
exista na vida da sua personagem). Quando o diretor do filme dentro
do filme reconhece nela uma grande personagem que ele quer trazer
para sua ficção (e vale dizer que próprio Riscado reaproveita
idéias e situações sugeridas por Teles, que inclusive é co-roteirista
do filme), há tanto um reconhecimento na potência presente na
presença dela, com um desinteresse completo pela capacidade dela
de se expressar. Claro que o processo de Riscado não é
o mesmo dos filmes citados, e que a intenção do filme não é criticá-los,
mas dentro de um contexto como o de Tiradentes o filme não deixa
de ter o inegável mérito de nos lembrar que, por todos os elogios
que eles freqüentemente recebem pela relação que estabelecem com
seus personagens, ela é bem menos afetuosa e pacifica do que se
pressupõe; é algo que os bons cineastas que se aventuram por este
processo sabem bem, mas que seus admiradores nem sempre reconhecem.
* * *
Copa Vidigal,
de Luciano Vidigal (Brasil, 2010)
Copa
Vidigal conjuga uma série de elementos
muito ricos no nosso imaginário: o futebol, o espaço da favela,
o espectro da violência urbana, etc. O filme consegue extrair
deste encontro um olhar com um frescor admirável, basicamente
por reconhecer num espaço negligenciado pelo cinema brasileiro
(o campo de futebol) um lugar de mediação privilegiado. O lugar
comum sugere que futebol não seria um esporte cinematográfico,
mas nada poderia ser mais falso. Poucos esportes se prestam tão
bem a ele já que poucos (boxe, basquete) despem o homem tão bem:
todos jogam contra todos, não há nenhuma regra complexa ou equipamento
que intermedeie nosso olhar diante dos jogadores. No campo de
futebol, a linguagem corporal está exposta o tempo todo. Nada
pode ser mais cinematográfico; o lugar comum é só uma forma de
esconder uma incapacidade de chegar até as coisas.
Em Copa Vidigal, temos
um torneio entre comunidades organizado por Cypa,
professor de futebol do Morro do Vidigal, para apaziguar os ânimos
após uma guerra entre traficantes. É deste paradoxo que o filme
trata: para comemorar a paz se promove outro tipo de batalha mais
saudável – mas que está longe de promover a paz entre os envolvidos,
já que cada time leva o torneio muito a sério. A certa altura,
Cypa precisa interromper
o torneio, pois um resultado polêmico irrita quem tinha grana
alta apostada no jogo. A violência é um dado constante, algo que
a câmera precisa de Vidigal não esconde, em partidas de grande
contato físico. Haverá também personagens notáveis como o próprio
Cypa
e Nélio, ex-jogador do Flamengo que retornou à comunidade, espectro
concreto de que mesmo o sucesso no futebol pouco garante como
forma de escape.
Há, principalmente, um sentimento de lugar
muito forte, seja no campo de futebol que Vidigal filma tão bem,
como no morro, personagem principal silencioso do filme.
São dois espaços de negociação, Copa Vidigal nos lembra.
Dominar o campo não é muito diferente de dominar a geografia do
morro, e um dos personagens até se dobra como moto-taxi local.
Numa cena muito forte, a bola escapa para o mato e a câmera segue
o jovem gandula que vai buscá-la. Vidigal conversa com ele sobre
como era perigoso entrar num matagal daqueles antes da paz, e
do desejo do menino em se profissionalizar, enquanto filma toda
a sua dificuldade em localizar a bola na mata que se desdobra
em manifestação concreta das dificuldades que cercam o garoto.
A mesma precisão que leva a câmera de Copa Vidigal a filmar
as partidas de forma tão direta também o leva a chegar aos caminhos
do morro com a mesma objetividade; o filme reconhece em ambos
os lugares a mesma necessidade de olhar.
Janeiro de 2011
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