in loco - cobertura dos festivais
Ser político
por Fábio Andrade

“For what force on Earth can be weaker than the feeble strength of one?”,
Ralph Chaplin

É interessante reunir em um mesmo texto filmes como Entorno da Beleza, de Dácia Ibiapina, e A Cidade é uma Só?, de Adirley Queirós. Antes de mais nada, por serem filmes feitos por um mesmo grupo, como comentado pela própria Dácia no debate sobre seu filme em Tiradentes - debate, como o do filme de Adirley Queirós, muito interessante justamente por ambos os diretores falarem de um lugar bastante diferente da maior parte dos realizadores presentes em Tiradentes, com outro vocabulário, outras inquietações, outras questões. Mas "grupo", aqui, precisa ser desvinculado do caráter coletivo que o termo assumiu no cinema brasileiro nos últimos anos, e que muitas vezes atrapalha o contato com os próprios filmes. O que parece haver, aqui, é sobretudo um sentido de continuidade – mesmo que um tanto descontínua – de diretores que, vindos de um mesmo lugar (o Distrito Federal), usam seus filmes também como uma forma de conversa, de responder um ao outro e de avançar assuntos já colocados em pauta. Entorno da Beleza, por exemplo, parece de alguma maneira movimentado por Fora de Campo, filme anterior de Adirley Queirós, feito para o DocTV. Lá, o foco estava em jogadores de futebol da segunda divisão do Distrito Federal e, embora Fora de Campo fosse, essencialmente, um filme de personagens, uma força centrífuga parecia agir sobre elas, como uma estrutura externa que os amarrava a uma determinada condição e que assinava sua tragédia. Para revelar essa estrutura, o diretor usava uma abordagem mais convencional de documentário de personagens, sem deixar de, com isso, apontar para o tal “fora de campo” (com duplo sentido) que os determinava. Era um filme de personagens dentro de um contexto social.

Entorno da Beleza
, ao contrário, parece ir diretamente a essa estrutura, no caso, os concursos de miss do Distrito Federal. Há uma narrativa de ascenção, mas principalmente um processo de descarte: se não sobram personagens claramente identificáveis ou relacionáveis ao final de Entorno da Beleza, se não temos chance de conhecê-los ou compreendê-los em maior profundidade, é porque de certa forma é isso que todo aquele processo de triagem faz com  aquelas meninas. Das várias candidatas, sobra uma vencedora, mas esta vencedora não é mais ou menos personagem do que as outras; todas elas foram igualmente triturados por aquele gigantesco moedor de particularidades. Entorno da Beleza não é sobre a vencedora, nem sobre as perdedoras, mas sim sobre o próprio processo de eliminação. É um filme de casting.

Aí talvez esteja o ponto mais interessante do filme, pois, em uma produção documentária muito firmemente calcada no “dar a voz”, em uma câmera que muitas vezes se coloca como justiceira social, Entorno da Beleza parece se concentrar justamente na ausência de voz que é garantida – e buscada – por uma estrutura externa de controle (o concurso de miss) e que o filme não tem medo de assumir também para si. O maior valor do filme está justamente em não revelar as complexidades imagináveis daquelas personagens – embora uma certa descontração escape aqui e ali – mas sim em se concentrar em revelar a estrutura de controle, tanto a do concurso de miss quanto a do próprio filme. Limando essas particularidades, é como se o filme precisasse se assumir próximo desse processo – igualmente cruel – para, enfim, revelá-lo. Ainda assim, há um equilíbrio curioso, e bastante difícil de se comprovar por procedimentos, entre o respeito às personagens e a crítica a elas, que Dácia Ibiapina consegue equilibrar pela maior parte do filme. Entorno da Beleza é um espelhamento – palavra importante pro documentário – mas o espelho, no caso, reflete a máquina cruel que o filme tenta compreender. É, portanto, um filme perverso.

Por outro lado, quando falo em um documentário capaz de revelar as estruturas sociais, em oposição à tradição recente brasileira de buscar o humano cooptado por essas estruturas, estou necessariamente falando de uma outra tradição documental, que tem como maior expoente Frederick Wiseman. A comparação é importante, pois revela o problema maior de Entorno da Beleza, o que impede que o filme seja algo mais do que uma curiosa exceção. Pois, no cinema de Wiseman, há uma consciência soberana de que o conflito ali é entre duas estruturas: a da instituição filmada (um hospital público; uma escola de segundo grau; uma companhia de balé; uma academia de boxe – e, ao fim e ao cabo, os Estados Unidos) e a do próprio filme. Não é à toa que Wiseman ficou conhecido pela frieza e impassividade com que ele coloca (e, principalmente, mantém) a câmera diante das situações mais adversas possíveis: é preciso que a estrutura, o código de funcionamento do filme, seja inabalável, caso contrário ele também será engolido pela máquina social que vai filmar. É preciso ser um jansenista, um artista impiedoso, de confiança inquestionável em seus próprios métodos, para conseguir se impor diante do que é filmado, e não ser engolido pela cena. Pois na estrutura social, não existe cena espontânea: ela é sempre ditada por um outro. A ausência de controle, neste caso, é simplesmente delegar o controle para quem já o tem. 

Embora Entorno da Beleza não abrace os discursos mais sedutores da contemporaneidade – o abraço ao erro; a beleza do processo; a insegurança que se disfarça de incerteza – o filme sofre justamente por seu coração mole, por ceder, aqui e ali, a um personagem mais carismático (o uso de entrevistas no filme, reservado a performers) ou se compadecer do sonho destroçado de uma menina que um dia acreditou ter nascido para ser princesa. Não deixa, porém, de ser um filme revelador em seu espelhamento, mais ainda quando visto dentro de um contexto também seletivo, dos grandes concursos que também são os festivais de cinema. Talvez justamente por não estar assim tão distante da rotina de rejeição daquelas meninas, o filme sai também machucado por aquela relação. Seus problemas são absolutamente humanos. Mas um concurso de miss – e tudo que ele simboliza culturalmente para um país – nada tem a ver com humanidade. A Entorno da Beleza, falta frieza e a convicção de que, se a câmera de cinema pode ser uma arma, às vezes é preciso empunhá-la como um soldado.

Nesse sentido, é uma felicíssima surpresa assistir a este A Cidade é uma Só?, novo filme de Adirley Queirós. Pois se Fora de Campo era um filme de alguma forma melancólico (o diretor, afinal, é um ex-jogador de futebol profissional, transitando por espaços muito parecidos com aqueles que se tornam cena no filme), A Cidade é uma Só? é um filme de revanche. Ainda temos uma estrutura social pesadíssima – a remoção de comunidades pobres no processo de construção de Brasília, enviadas para Ceilândia; mas, principalmente, a cooptação dessas mesmas personagens como agentes voluntários de sua própria “morte”, transformando um assassinato em suicídio – que o filme dá conta em sua porção documental; mas, com um golpe à Murnau em A Última Gargalhada, Adirley cria Dildu, personagem ficcional de uma vivacidade tão contagiante que é capaz de dar um golpe nessa mesma estrutura. Se não há fraqueza maior do que a força de um único indivíduo, como diz a canção sindicalista de Ralph Chaplin, o cinema é um dos lugares em que essa equação pode ser invertida, e a pessoa pode agir e transformar de fato a estrutura opressora no momento em que é transformada em personagem. Como em Bastardos Inglórios, de Tarantino, o filme é a chance de revanche da vida contra a realidade.

Há uma beleza ímpar nesse gesto, pois a ficção se torna a grande possibilidade de se mudar de condição dentro do corpo social. A farsa é o verdadeiro golpe na realidade, pois a realidade é trágica, e a farsa, ao contrário, é viva, extremamente viva. A política, aqui, é assumida no próprio gesto artístico: é o filme quem é capaz de redefinir os espaços (não à toa, há um outro personagem ficcional que vive de comprar e revender terrenos desocupados) e de permitir, aos personagens, a possibilidade de triunfarem contra a estrutura opressora. E nisso, filme e personagens se encontram em uma mesma situação. Pois o que fica, ao final, é a impressão de que o cineasta se apega a cada pequeníssima filigrana do trabalho como se sua vida dependesse disso, como se o ato de filmar fosse, em última instância, a única maneira de se provar que se está vivo. Junto com O Homem que Não Dormia, de Edgar Navarro, o filme de Adirley Queirós tem uma característica ironicamente surpreendente nessa geração mais recente do cinema brasileiro: uma enorme alegria em filmar. É algo que, talvez, só possa ser dito em pé de igualdade a respeito de filmes realizados recentemente por veteranos – algo a ver com ter certeza da morte.

Ainda que se destaque como gesto, A Cidade é uma Só? não deixa de, como As Horas Vulgares, de Rodrigo de Oliveira e Vitor Graize, lidar com o cinema de seu tempo e lugar. Pois o filme de Adirley Queirósfaz uma ponte improvável entre o cinema que cria a partir da pesquisa de registros que marca o trabalho de um grupo como a Símio Filmes, de Pernambuco (Avenida Brasília Formosa, Pacific, As Aventuras de Paulo Bruscky), com a potência da prosódia e do regionalismo, do extremamente particular, da Filmes de Plástico, de Minas Gerais (Fantasmas, Contagem). De certa forma, A Cidade é uma Só? funciona como uma síntese do que de melhor foi feito no cinema brasileiro recente, mas sua urdidura é tão exímia que isso não parece um gesto de esforço, a ponto de dificultar que qualquer coisa além de flashes de impressões possam ser escritos após um primeiro contato com o filme. Uma vez Ilana Feldman me relatou com precisão a sua sensação era de que há filmes que são tão bem resolvidos que era como se eles não precisassem da gente. Tenho sensação semelhante com A Cidade é uma Só?: o filme realmente parece não precisar da gente, ao menos não tanto quanto nós precisávamos dele. 

Fevereiro de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


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