in loco - cobertura dos festivais
Sonata de Tóquio (Tôkyô Sonata), de
Kiyoshi Kurosawa (Japão, 2008) por Fábio
Andrade Iluminação
“Que maravilha seria se minha vida toda tivesse
sido um sonho, e eu acordasse e fosse uma outra pessoa”, diz Megumi (Kyoko Koizumi),
já na última meia hora de Sonata de Tóquio. Sabendo da predileção de Kiyoshi
Kurosawa pelo fantástico (ele é um dos pais do J-Horror – gênero que teria filhos
reconhecíveis como Ringu e Água Negra), era de se imaginar que a
frase servisse como trampolim para o sobrenatural, o onírico. Mas não, não é isso
que acontece. O mundo é, agora, demasiadamente concreto para permitir a fuga duradoura
para outros planos. Deixando de lado o nicho onde transita com maior constância,
Kurosawa (nenhum parentesco com Akira, é sempre bom dizer) parece interessado,
com Sonata de Tóquio, em um dos mais particulares gêneros da tradição cinematográfica
japonesa: os dramas familiares de Yasujiro Ozu. Há uma família
projetada sobre um espaço, dentro de um período crítico de transição: a demissão
do pai de seu antigo e confiável emprego. Aos poucos, porém, conheceremos melhor
os outros membros da família Sasaki, e perceberemos que, ao contrário de Ozu,
não é na contingência que Kurosawa está interessado, mas sim no momento de exceção.
A demissão é a claquete que dispara a câmera, mas – assim como em O Lar,
de Ursula Meier – o dispositivo parece apenas acentuar questões que já estavam
presentes, relações que já rangiam em seu contato diário. Nos momentos de maior
tensão familiar, os aposentos são invadidos pelo efeito estroboscópico das luzes
de um trem que passa, rugindo, ao lado da residência dos Sasaki. As luzes invadem
o ambiente, projetadas sobre rostos, roupas e paredes; mas o trem permanece, sempre,
do lado de fora. Apesar do tempo seguindo, firme, em seus trilhos, a câmera de
Kurosawa nunca abandona suas personagens para criar, com isso, uma representação
totalizante da sociedade japonesa – há, apenas, alguns poucos e belos planos da
cidade sem rosto em todo o filme. Os focos de seu interesse estão ali, sentados
ao redor daquela mesma mesa: Ryuhei (Teruyuki Kagawa), Megumi, Kenji (Kai Inowaki)
e Taka (Yu Koyanagi). Pai, mãe e seus dois filhos. Apesar
desse consciente afastamento do tempo que os cerca, a presença do trem é essencial,
pois marcará não só o movimento constante de um mundo que não pára para esperar,
mas também a maneira que Kurosawa usará para trabalhar a relação de suas personagens
com o espaço: a luz. Assim como, do trem, só vemos os faróis, o diretor (com a
inestimável colaboração de seu parceiro de fotografia, Akiko Ashizawa) estabilizará
o maior plano de tensão pela manipulação expressiva da mistura de temperaturas
de cor. Para filmar o lar – ambiente tradicionalmente associado ao calor das lâmpadas
de tungstênio – Kurosawa trabalhará com a película sempre balanceada para lâmpadas
fluorescentes – luz de temperatura de cor mais alta, tão associada aos escritórios
das grandes corporações, às delegacias e aos hospitais – criando, em tela, um
inquietante “erro” de exposição: em vez de transmitirem o conforto acolhedor a
que estão sempre associadas, as lâmpadas de tungstênio geram, na película desbalanceada,
um âmbar agressivo que parece capaz de incendiar o lar da família Sasaki. Esse
efeito, porém, é mais do que estético: é o verde da luz fluorescente e a frieza
das relações profissionais que são levadas, em Sonata de Tóquio, para dentro
do lar. Mesmo dentro de casa, suas personagens se relacionam com olhos profissionalmente
frios. Esse detalhe de fotografia – aparentemente tão pequeno, mas tão precioso
no desenvolvimento dramático do filme – coloca o espectador em um outro estado
de atenção. Pois, apesar da dramaturgia bastante clássica, Kurosawa está interessado,
também, em fazer ferramenta narrativa dos próprios elementos da construção cinematográfica.
Mais do que qualquer diálogo, a instabilidade de uma relação familiar pode ser
literalmente expressa pela manipulação da luz e da cor. Como a dramaturgia clássica
trabalha com signos tão predeterminados, a simples desestabilização da representação
tradicional de um signo se torna, em Sonata de Tóquio, um elemento de discurso.
Esse signo pode ser a luz, o vestuário (a proliferação de ternos ociosos nas filas
de distribuição de comida), a cenografia (a casa escolhida às margens da linha
do trem), o diálogo entre gêneros (Sonata de Tóquio é, igualmente, uma
comédia, um drama, um filme de horror, etc); tudo aparece, para Kurosawa, como
potência de cinema. Um dos mais expressivos usos da película,
nesse sentido, é justamente em uma breve fuga do concreto. Após Taka se alistar
como voluntário para o exército americano, a televisão dá a notícia de que o governo
dos EUA teria anunciado uma expansão do plano de guerra no oriente médio, e que
as tropas voluntárias estariam incluídas nessa expansão. Ao desligar a TV, Megumi
sonha que o filho voltava da guerra logo no dia seguinte; mas seu sonho vem com
uma granulação que não existe ao longo de todo o filme. Embora a cena seja plenamente
iluminada, o uso da película de maior sensibilidade gera um efeito narrativo:
o sonho é, ao fim, um esgarçamento da visão; uma possibilidade de ver mais claro
que é comprometida pela perda de detalhes, pela deformação do mundo em grandes
torrões de emulsão sensível. O desejo é transformado em imagem, e há, com isso,
perda da nitidez do mundo. Não por acaso, a película ultra-granulada só reaparecerá
em uma sequência que, apesar de concreta, filma o conceito de “sonho”: Megumi
caminhando sobre um pier, de frente para o infinito do mar, se perguntando se
ela ainda pode recomeçar sua vida. Em
mundo construído com tanto cuidado para a câmera, é logo perceptível que as preocupações
narrativas de Kurosawa sejam, também, com a imagem: Sonata de Tóquio é
um filme sobre aparências. Assim como percebemos que o ladrão (interpretado por
Kôji Yakusho – ator-fetiche de Kiyoshi Kurosawa) esconde o rosto não por medo
de ser reconhecido, mas por dignidade, o maior problema da perda do emprego não
é financeiro, mas sim imagético. Mais importante do que ter um emprego é gozar
de um certo status; é usar terno e gravata. Não à toa, ao aceitar um trabalho
como faxineiro de um shopping center, Ryuhei encontrará um pacote de dinheiro.
Em vez de mantê-lo, ele o devolve à caixa de achados e perdidos do shopping.
Mais expressivos do que as longas filas na central de emprego são, portanto, os
planos em que os faxineiros trocam – ao fim do dia – os uniformes laranjas por
ternos; ou o professor que tenta esconder a capa do mangá erótico que folheia
no trem, mas briga com Kenji por estar passando uma dessas revistas dentro de
sala de aula; ou ainda a maneira como o amigo desempregado de Ryuhei programa
seu celular para tocar cinco vezes a cada hora, criando a imagem (para os outros
e para si mesmo) de que ele é requisitado, de que ainda tem um emprego. Esse
apego à aparência constrói, por fim, o discurso central de Sonata de Tóquio:
a necessidade de reiniciar a visão. Após uma descontrolada busca por epifanias
em noite passada ao lado de um estranho, Megumi caminha na praia lentamente, com
os olhos fechados. A cena é tomada pela necessidade de se zerar os olhos, de voltar
a transitar no mundo sem se deixar guiar exclusivamente pelo visível, pelas imagens.
É o retorno ao fade. Em um longo travelling, acompanhamos Megumi
em sua cega caminhada. De repente, a aurora ilumina seu rosto e a faz abrir os
olhos novamente. Essa trajetória está presente em cada uma
das personagens, reproduzindo, em sua estrutura dramática, a forma musical da
sonata: exposição, desenvolvimento e reexposição. Mais do que uma estrutura que
sustenta os arcos dramáticos particulares, a proximidade dos termos musicais com
o olhar é preciosa, pois Sonata de Tóquio é tomado pelo desejo de reexpor
um olhar ao mundo; de voltar a enxergá-lo como se fosse a primeira vez (talvez
a definição mais adequada para o conceito de epifania). Para isso, porém, é preciso
que as personagens aprendam a enxergar sem os olhos. Para Taka, a crueza da guerra
é reveladora de uma ambiguidade que ele, antes, não percebia no mundo. Para Megumi,
a fuga temporária com o estranho a faz flutuar sobre uma praia de escuridão (em
um dos planos mais deslumbrantes de todo o filme) para, ao fim, voltar a enxergar
com o nascer do sol. E para Ryuhei, é a percepção que, mais importante do que
sua imagem como funcionário, a transformação do olhar precisa vir de sua posição
como pai. Não à toa, ela vem do contato com Kenji. Se, até então, a relação entre
os dois era de repulsa e desconfiança, é Kenji – garoto que estudava piano escondido
dos pais, praticando em um teclado que não produzia som – quem o ajudará a enxergar
sem os olhos. Por
isso a epifania final é, em Sonata de Tóquio, musical. Em sua avaliação
para o conservatório de música, Kenji senta ao piano e toca Claire de Lune,
de Debussy. Mas toca a peça sem seguir uma partitura, com os olhos dançando no
espaço como os dedos administram os claros e escuros do teclado. Há uma música,
e ela não é visual. Por isso mesmo, é hipnótica. É uma revelação. É com essa sequência
maravilhosa – em vários sentidos – que Kiyoshi Kurosawa encerra sua Sonata.
Não pela necessidade moralista de que tudo há de ficar bem, e de que o mundo é
regido por uma harmonia externa em que as coisas voltam, ao fim, a seus lugares.
Mas sim porque, quando o mundo visível se torna por demais insuportável, há sempre
a possibilidade de um breve encanto em uma outra gaveta, um outro lugar, um outro
som. E a percepção de que, às vezes, para enxergarmos diferente o balé de tensões
que configura a vida, talvez seja necessário fechar os olhos. Outubro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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