Fabricando Tom Zé, de Décio Matos Jr. (Brasil, 2006)
por Fabio Diaz Camarneiro

Com defeito de fabricação

O ponto de partida de Fabricando Tom Zé é uma turnê do cantor e compositor baiano pela Europa. Um caminho com altos e baixos, acertos e erros: a banda é ovacionada em Paris; recebe vaias em Viennes e se envolve em uma briga nos bastidores do festival de Montreux, quando Tom Zé parte para cima do técnico de som do festival aos gritos de “vá pra porra” – grito de baiano “arretado” na Meca dos fãs de jazz.

O documentário de Décio Matos Jr. descarta o tom laudatório e chapa branca e não tenta construir um verbete de enciclopédia (problema de certas biografias sobre figuras de importância “inquestionável”, acima do bem e do mal). Em Fabricando Tom Zé, temos apenas um homem vivo, com mais dúvidas que certezas. “Feio, pobre, baiano, filho da puta” é o resumo que Tom Zé faz de si mesmo após um momento de fúria. E os melhores momentos do filme são como esse: quando surgem, lado a lado, o retrato do “gênio” e da “besta” (na fórmula de O bandido da luz vermelha, de Sganzerla). Um gênio “com defeito de fabricação”.

Enfant terrible do tropicalismo, talvez exigente demais para os caciques Caetano e Gil, Tom Zé viveu no semi-ostracismo por quase duas décadas: desde os geniais discos dos anos 70 (como Todos os olhos e Estudando o Samba) até ser redescoberto por David Byrne (ex-Talking Heads), no início dos anos 90. A fórmula professada pelo músico é não ter autocomiseração. Tom Zé revela-se exigente e até mesmo perfeccionista com seu trabalho: vemos isso nas gravações de estúdio, nos ensaios com a banda, nos improvisos durante os shows. Arca com as conseqüências de fazer uma música sofisticada e ser mal-compreendido e achincalhado. Tudo isso está longe de ser simples.

De certa forma simples são os depoimentos de Arthur Nestrovski e Arnaldo Antunes, que parecem estar lá para cair na lógica laudatória, lembrando a “importância inquestionável” do personagem. Melhor quando surgem Caetano e Gil (passando a limpo o passado) ou David Byrne explicando a resistência quando ele resolveu lançar discos de Tom Zé nos EUA. Misturando subdesenvolvimento e sofisticação, Tom Zé realiza a síntese de extremos. Daí porque talvez ele seja o mais tropicalista dos tropicalistas, o movimento que colocou em choque um Brasil ao mesmo tempo moderno e cafona. O próprio Caetano recorre ao excesso para falar de Tom Zé: gênio.

Ou besta. Novamente a auto-ironia de Tom Zé resolve a parada ao declarar: “quando a gente não sabe tocar nada, a diferença entre o piano e a enceradeira é mínima”. E há algo mais contemporâneo do que tirar som de uma enceradeira?

Mas a grande surpresa do filme é mesmo Neusa. Jornalista que abandonou a profissão para se casar com Tom Zé e ser sua produtora, é ela quem o suporta (e lhe dá suporte). Neusa é onipresente, e é na face serena dela que o documentário consegue mostrar a dor e a delícia da existência de Tom Zé. É ela quem fala da dedicação do marido à música e das dificuldades durante os anos de esquecimento do público e das gravadoras. Em certo momento, Tom Zé confessa que sua vida é fazer Neusa feliz. Palavras que traduzem amor e – quem sabe? – alguma culpa. Como se a alta exigência dele desejasse fazer jus à dedicação dela.

O filme de Décio Matos Jr. é coerente às incoerências de seu personagem. Estão em cena o Tom Zé festivo, o Tom Zé irascível, o Tom Zé performer brilhante, o Tom Zé performer vaiado (às vezes ao mesmo tempo brilhante E vaiado). Dá até para perguntar porque o cinema brasileiro não abandona um ranço de “correção” e passa a retratar, no documentário ou na ficção, mais personagens com defeitos de fabricação. Personagens vivos, talvez demasiado vivos...

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