Tony Manero (idem), de Pablo Larraín (Chile/Brasil, 2008)
por Eduardo Valente

Cinema que vence armadilhas

Não são de pequeno porte as três armadilhas distintas que Pablo Larraín tem à sua frente ao realizar este Tony Manero. A primeira é da ordem da construção do seu personagem principal e do mundo que o circula diretamente: pois, ao centrar seu filme num homem miserável (no sentido existencial do termo), o miserabilismo está sempre ali na esquina – essa maneira fácil de afirmar a tristeza e a sujeira do mundo como fatos constitutivos únicos que permite espectador, personagem e realizador de mergulharem numa chave simplista de comiseração coletiva (“como o ser humano é sujo, como o mundo é mau”). A segunda é da ordem da construção do contexto histórico-social que cerca essa narrativa: ao localizar a história de Raul Paredes em plena ditadura de Pinochet, seria muito fácil plasmar personagem em regime de governo, tornando o primeiro uma metáfora unidimensional (e, portanto, despida de real interesse) do segundo. A terceira armadilha fala da construção estética-narrativa do filme: começando com mais um daqueles planos de câmera na mão ostensiva que acompanha um personagem a partir da sua nuca, pegando-o em pleno movimento, Larraín poderia apelar a uma estética “pós-dardenniana” extremamente em voga, e ao conformar-se com ela fazer pouco mais do que afirmar uma “realidade social” construída em artifícios de realismo já um tanto esperados a esta altura.

Se seria inexato dizer que Larraín escapa completamente de cada uma destas armadilhas, parece claramente muito mais em desacordo com o Tony Manero que está na tela diminuir este segundo longa do jovem realizador chileno a um, ou mesmo a todos estes problemas - dos quais, ao fim e ao cabo, ele se desvencilha com surpreendente sucesso. É fato que, em se tratando o cinema de uma matéria audiovisual viva, na qual movimentos e enquadramentos de câmera, inflexões de rostos, vozes e corpos dos atores em ação num espaço, usos de sons e palavras captados em locação ou pós-produzidos e ritmos de cortes produzem um resultado final único e orgânico, não é tarefa pequena tentar dar dimensão na linguagem escrita aos motivos pelos quais Larraín supera estes desafios (que, afinal, ele mesmo se impôs ao escolher seus recortes de personagem, contexto, estética). Seria de fato mais simples agarrar-se ao resultado parcial de qualquer destas características, e assim aprisionar o filme nas redes de uma análise bem estruturada, que poderia até ser reconhecível no que está na tela, mas que somente o seria através de uma operação de redução extrema. Porque, de fato, o que há de realmente admirável em Tony Manero é sempre da dimensão do imaterial, do dificilmente argumentável: fala-se aqui de carisma, de verdade (verdade entendida, é claro, não como verossimilhança nem autenticidade histórica ou afins, mas sim a verdade interna a um universo ficcional dado), de talento em última instância.

Ao carisma, primeiro: carisma deste grande ator que é Alfredo Castro, que permite que Raul/Tony ultrapasse de lavada a armadilha do miserabilismo de seu personagem. Sim, porque por mais que o roteiro apele aqui e ali para determinadas soluções que podem nos levar por esse trajeto (como a questão da impotência sexual), há na criação de Raul/Tony no corpo/rosto/voz de Alfredo Castro mais do que o suficiente para fugir deste lugar. Há a dignidade na forma de repetir em inglês ao microfone as falas do Tony Manero dos Embalos de Sábado à Noite, há a capacidade de seduzir todas as mulheres à sua volta (mesmo impotente, mesmo arrasado, mesmo desesperado), há o sofrimento difícil de explicar naqueles olhos que choram vendo o filme no cinema (e, é sempre bom relembrar: Saturday Night Fever é antes de tudo um filme tristíssimo, de um realismo dolorido sobre a working class do Brooklyn dos anos 70). Há, em suma, um personagem de carne e osso que escapa das simplificações que seu percurso em inegável espiral rumo abaixo poderia engendrar – que tem seu ápice na sublime (mas perdedora) apresentação no programa de TV.

Depois, a verdade: verdade acima de tudo de um ambiente criado por Larraín que impede que o filme tenha qualquer traço de simples metáfora histórica ou social. Ambiente, entendido antes de tudo pelo entorno imediato que cerca Raul/Tony: o espaço da pensão/casa/restaurante onde ele habita com os outros personagens numa mistura de espaço público e privado, de interseções de intimidades (o banho de banheira ao lado da mesa da cozinha) com manutenções de distâncias (o cadeado na porta do quarto). Ambiente, em seguida, construído por este mesmo casting de coadjuvantes que formam uma estranha família de regras incertas nunca de todo explicadas/entendidas, onde um certo pacto orgânico e incomum parece reger os comportamentos, no qual não podemos fazer mais do que acreditar. E ambiente, ao final, de um país em estado de sítio: ruas vazias, violências comuns que não chocam (os assassinatos que nunca geram uma reação pública, as agressões vistas/ouvidas de soslaio), todos estes construídos por Larraín sem esforço exagerado ou tintas que os sublinhem, mas apenas ali, abraçando estes personagens, este espaço físico onde eles circulam.

Finalmente, o talento: a capacidade de Larraín de, mesmo que margeando aqui e ali uma linguagem de tiques conhecidos (a tal câmera na mão hiperconsciente, o desfoque ocasional), estar acima dela como única característica do seu trabalho. Há na forma de cortar e/ou de deixar alguns planos alongarem-se (o do primeiro golpe de Tony numa vítima é exemplar), por exemplo, uma inteligência cinematográfica aguda sobre o tempo e ritmos, e seus efeitos no espectador. Há uma inteligência notável também nas opções entre o que mostrar ou não mostrar, explic(it)ar ou não, que coloca o espectador numa posição ativa, ainda que um tanto desconfortável (um desconforto sadio) entre o entendimento e a suposição, a identificação e a repulsa. Como resultado dessa combinação, ao invés de um trabalho facilmente descartável como poderia ser se caísse nas armadilhas citadas no começo do texto, Tony Manero, o filme, converte-se constantemente num problema (no sentido mais amplo do termo) para quem o assiste – e isso é muito bom.

Abril de 2009

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