ensaios
São Paulo em trânsito
por Cléber Eduardo

Não são poucas as seqüências ambientadas dentro de ônibus em Linha de Passe, de Walter Salles e Daniela Thomas, filme que marca o retorno da dupla ao solo paulistano, depois de sua primeira parceria em Terra Estrangeira (cuja primeira parte é situada em São Paulo). O ônibus não entra em cena apenas como ambiente, mas como local dramático, tanto porque é o espaço em deslocamento de personagens em imobilidade social quanto porque é o espaço onde um garoto procura seu pai. O deslocamento como possibilidade de encontro, pois.

Em outro momento, esse mesmo garoto simula dirigir um carro caído aos pedaços, sempre imóvel no quintal de sua casa (equivalente do navio encalhado em Terra Estrangeira). Fantasia a mobilidade, da qual o outro lado é o sofá em frente a TV em sua casa, pelo qual pega dinheiro da mãe para comprar seu lugar. No sofá, diante da TV, o noticiário, quando se consegue ouvir, fala de greve de motoristas e metroviários, ou seja, do risco de imobilizar a população. Enquanto isso, um dos irmãos do garoto, motoboy, anda de lá para cá, atrás da sobrevivência no trânsito. Se muda a forma de sobreviver, nos momentos próximos ao final, continua no trânsito, não mais atravessando-o, sobrevivendo nele, mas, sim, mergulhando nele, sobrevivendo dele. A imobilidade dos carros proporciona a perspectiva de mobilidade no sinal vermelho. A mobilidade na interdição. Pare!

Ao final, o menino, dividido entre o sofá diante da TV, o carro caído aos pedaços e o deslocamento nos ônibus, realiza o desejo da mobilidade pelas próprias mãos. O motoboy se afundará mais no desrespeito ao sinal vermelho ao invadir um carro. Seu irmão crente sujará a mão após ser assaltado por um motoboy em posto de gasolina. Tudo remete a mobilidade: o ônibus, o motoboy, o carro invadido, o posto de gasolina. Ouvimos nos últimos planos um mantra, “ande, ande, ande”, que se dirige ao próprio personagem a ritualizá-lo, mas também a todos os demais. Desloquem-se. Não por acaso, a imagem derradeira é a de um ônibus em deslocamento, andando, sendo posto para andar, afastando-se da câmera para seguir rumo ao desconhecido.

Se toda a dinâmica dramática e até “semântica” de Linha de Passe passa pelo deslocamento por São Paulo e pelo trânsito da cidade, essa dinâmica não é exatamente uma novidade nas narrativas ambientadas na cidade, mas, talvez, o principal motor de um conjunto de filmes para os quais o deslocamento e o engarrafamento são fundamentais. O fundamento em questão é justamente essa relação de tensão entre trânsito e imobilidade. O estar em trânsito é tão associado ao estar imóvel que “muito trânsito” não significa muito deslocamento, mas a ausência de movimento pelo excesso de carros, um estar em interdição do movimento no trânsito. Não se trata de representar o trânsito, no sentido de procurar uma imagem documento da (i)mobilidade na cidade, mas de transformar o trânsito em expressão dramática, colocando-o em relação menos ou mais “simbólica” com o percurso e os sentidos dos personagens em jogo.

Outros trânsitos

Em Não por Acaso, de Philippe Barcinki, o controlador de trânsito, homem sentado diante de monitores, terá de deslocar-se pela cidade, traumatizado por uma perda (no trânsito) e com receio de outra (em trânsito). Já um outro personagem, também afetado por uma perda no trânsito, aproveita o engarrafamento para, dessa vez, corrigir simbolicamente um suposto erro anterior. A cidade mata no trânsito, mas também promove encontros. A imagem final, tão recorrente nos filmes brasileiros dos anos 2000, é de personagens em movimento, afastando-se da câmera, como o ônibus de Linha de Passe. Pai e filha, ambos com perdas no trânsito, em trânsito na cidade, de bicicleta, deslocam-se por entre os prédios, de forma lúdica, rumo a algum futuro.

Há também senso de futuro na imagem final de Linha de Passe, mas é uma imagem quase mítica (e não realista), que mostra a intervenção da instância autoral no destino dos personagens (de um ou outro pelo menos), como se inventasse uma saída onde não havia, como se quisesse tomar um partido, intervir naquele mundo e naqueles percursos, de modo a criar um ponto de fuga. Mas é um ponto sem garantias. Pode-se reconhecer essa mesma abertura no último plano de Os 12 Trabalhos, de Ricardo Elias (foto), em que, depois de ter seu projeto de reconstrução de identidade ameaçado pelas contingências, um motoboy perde o tio no trânsito, mas, em compensação, paradoxalmente, ganha a chance de uma nova vida. Imagem final: o mar, moto ao lado.

O trânsito como espaço dramático, porém, também é o cenário da morte. Ela está presente não somente em Os 12 Trabalhos e Não por Acaso, mas em outros filmes, desde A Hora da Estrela, de Suzana Amaral – cujo desfecho é o atropelamento de Macabéia. Também se morre atropelado em A Via Láctea, filme passado dentro de uma consciência em coma, que, antes de apagar, transita pela memória e tenta atravessar o trânsito. Trânsito como interdição de um acerto de contas afetivo.

São muitas as formas de se aproximar do espaço público e de trânsito de São Paulo. Pode ser por meio dos testemunhos de seus protagonistas (Em Trânsito, de Henri Gervaiseau, Motoboy – Vida Lôca, de Caíto Ortiz); como informação dramática em diálogo (a morte em acidente de uma cliente em A Casa de Alice, de Chico Teixeira), como experiência do deslocamento na imobilidade (Handerson e as Horas, de Kiko Goifman, passado dentro de um ônibus). Mas há também o deslocamento por trem e metrô, como vemos na procura dos personagens de De Passagem, de Ricardo Elias, que buscam um morto e respostas para a morte; e na caça à mulher ideal do protagonista de Jogo Subterrâneo, de Roberto Gervitz (foto). Os vagões serão momentos de abertura para encontros, para trocas de afetos e de possibilidades de desejo, como no flerte do jovem em De Passagem. Em Contra Todos, de Roberto Moreira, estar em trânsito, no ônibus, é o momento da subjetivação de uma adolescente, momentos dela com ela, uma intimidade em pública e no deslocamento.

Uma certa “paulistanidade”

Seria o estar em trânsito a principal característica de uma “paulistanidade” cinematográfica? Essa “paulistanidade”, como usada aqui, não é de origem, pois não se trata de uma identidade de olhar de diretores nascidos em São Paulo. Ela é da imagem e está na imagem; imagens de São Paulo, mas, sobretudo, “em” São Paulo. Imagens em São Paulo dizem respeito, somente, a São Paulo como espaço diegético. A “paulistanidade diegética” seria, portanto, a soma de todas as imagens paulistanas, com destaque, claro, para certas recorrências nessas imagens.

A principal delas, antes mesmo do estar em trânsito, é o ceticismo. Há uma aproximação em alguma medida com o senso trágico em uma grande quantidade de narrativas paulistanas, como se as situações carregassem um mau presságio e como se os personagens estivessem condenados a errar, a vagar, a terminar no chão ou em deslocamento rumo a futuro qualquer, em imagens abertas e sem garantias, sem apontamentos claros, como o plano final de Bicho de 7 Cabeças, de Lais Bodansky, ou de Um Céu de Estrelas, de Tata Amaral (foto), cujos protagonistas terminam rompidos com uma ordem (talvez, uma ruptura e um luto necessários para uma posterior libertação – ou mesmo reconciliação no caso de Bicho de 7 Cabeças).

Se falamos em “paulistanidade cinematográfica”, portanto, falamos em narrativas em São Paulo, com todas as suas variações. E pela soma de todos os filmes desde os anos 90, com exceções como O Corpo, de José Antonio Garcia; Ed Mort, de Alain Fresnot; os filmes de Luiz Villaça (Por Trás do Pano, Cristina Quer Casar); e as incursões de Bruno Barreto pelos ambientes paulistanos (O Casamento de Romeu e Julieta e Caixa 2); logo se verifica a raridade do humor, traço tão ausente quanto visões conciliadoras ou desfechos com garantias de bem estar. Há quase sempre uma ausência, uma perda, um trauma, mortes, uma incapacidade de crer sem desconfianças.

Sem abrir mão dessas características, as narrativas para as quais o trânsito é uma questão-chave coloca os percursos dos personagens em uma zona de deslocamento, entre um lugar e outro, entre uma coisa e outra, mantendo essa mesma indeterminação do movimento em seus finais. Indeterminação porque, no deslocamento permanente dos personagens (literal e dramaticamente), só há alguma certeza sobre os rumos desse movimento quando se tomba em trânsito. Caso contrário, o trânsito é o estado “de vagar”: estágio a ser superado, a própria imagem de percurso dramático, com acelerações, esperas, suspensões de movimentos e acidentes. O espaço público das narrativas paulistanas é o do deslocamento e o espaço do descolamento compreende a imobilidade e o risco de vida. Mover-se é a condição e o preço a se pegar nessas narrativas.

Setembro de 2008

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