Três Enterros (Los Tres Entierros
de Melquiedes Estrada),
de Tommy Lee Jones (EUA/França/México, 2005)
por Cléber Eduardo
Sopro de vida no esquematismo
Quem matou Melquíades Estrada? Logo veremos a
resposta. No movimento de câmera inicial, somos situados no espaço
geográfico – Texas, fronteira com o México. As primeiras aparições
humanas são de dois ícones da tipologia local: homens vestidos
com roupas “militarizadas” (não de militares), armas na mão, dedicados
a matar um lobo, apenas pelo prazer de matar. A cultura da violência,
nesse mínimo detalhe, está ali sedimentada. Existe uma conseqüente
analogia entre o tiro no lobo, dado por esses dois tipos, e a
posterior descoberta de um cadáver, o do mexicano Melquiades Estrada.
A arma que mira no lobo e a que gerou o cadáver são partes do
mesmo caldo cultural. Porque se está fazendo, em Três Enterros
(estréia na direção do ator Tommy Lee Jones), a síntese de determinado
espaço social-cultural.
Quem matou Melquiades Estrada, portanto, foi o
Oeste do Texas. Ao fazer a leitura desse segmento da sociedade
americana, em tensa relação com os vizinhos mexicanos imigrados,
não se está tematizando apenas a questão EUA-México, mas uma atitude
americana com o “estranho”. Existe um olhar para a própria cultura
na tela, de modo a sublinhar aspectos negativos dela. Sua estrutura
dramática de “cumprimento de promessa” e de “redenção da culpa”
salienta o aspecto revelatório da jornada filmada, usando-a para
revelar, antes de mais nada, a crise do significado de ser americano
hoje. Há algo de mea culpa no vínculo do filme com uma
noção de povo – dos EUA – e algo de atitude exemplar enquanto
expressão individual diante desse povo (um recado de um americano
para americanos).
Lee Jones estabelece dois tipos de aproximação
com seu espaço geográfico-cultural. Um lança-se à leitura do contexto
real, expondo uma atitude e uma ideologia da direita americana,
por meio de experiências diretas, integradas à ficção, cujo caráter
de sintoma de sociedade, conseqüentemente, não mata a singularidade
de certas vidas (exóticas que sejam). Em outros momentos, abrindo
mão dessa tentativa de localizar o geral no particular de vidas
comuns, investe no simbólico, em situações claramente pensadas
“quase apenas” para dizer algo sobre aquele ambiente, aludindo
mais a um espaço fora da ficção que trabalhando dentro dela. No
lugar da experiência direta, temos a experiência simbólica.
Apoiado em roteiro do mexicano Guillermo Arriaga
(Amores Brutos, 21 Gramas) Lee Jones vai às profundezas
mexicanas, menos sintonizadas com o segmento urbano-contemporâneo,
e encontra lá uma convivência entre a miséria mundana e uma atmosfera
sagrada. Se vemos rádios e televisores, uma antena com a América
mesmo sem captar o sentido, vemos também um ar idílico na pobreza,
uma ingenuidade na resignação, uma não-contaminação pela contemporaneidade,
não sem conformismo, não sem passividade. O idealismo construtor
da imagem do “bom latinoamericano” pode ser relativizado pela
descoberta da falácia do topos ideal, do mito-utopia da
harmonia com a natureza, mas não atenua o olhar romântico para
os sinais do terceiro mundo.
Já o olhar para o ambiente texano não abre mão
de julgamentos, reprovações e uma inegável disposição de expor
o patético. Numa seqüência em que um policial transa na cozinha
com sua jovem esposa entediada, sem nada fazer além de aumentar
o tédio dela, vemos na escolha do quê e de como filmar a revelação
do olhar do cineasta para seus personagens e seu ambiente. Lee
Jones está atrás do patético de uma situação íntima, para, assim,
pelo ridículo, nos oferecer elementos para julgar o policial e
inocentar sua esposa – uma oprimida resignada, que depois será
mostrada em situação adúltera em um programinha para matar o tédio.
A ambigüidade dessa personagem, ou a dualidade
naturalizada dela, é uma marca geral de Três Enterros.
A própria situação-matriz – o tiro do policial no mexicano – é
uma passagem ambígua. Se já sabemos como é o policial ao chegarmos
a essa seqüência, tomando-o por um sujeito violento, ali somos
apresentados a uma circunstância na qual a responsabilidade dele
é relativizada. Seus tiros fatais não são de execução. É sua paranóia,
sua mentalidade reativa, sua cultura de estar sempre alerta para
o perigo, que aciona o gatilho. Isso faz do personagem menos um
vilão, como somos induzidos a vê-lo após algumas de suas aparições,
e mais como produto de um contexto social. Não estamos diante
de um monstro, de um psicopata, de um serial killer, de
um nazi-fascista, mas de um sujeito comum, com emprego, sem falhas
de caráter explícitas, que, no entanto, tem o comportamento modelado,
ao menos parcialmente, pelo lugar onde está e pela tarefa a qual
se dedica.
É preciso afirmar ainda pelo menos dois talentos
em Três Enterros. Um é a transição por tempos narrativos
distintos sem a pedagogia visual da alteração de texturas. Outro
é a convivência do humor macabro com o sentimentalismo, sem se
abrir mão da “leitura de realidade” e sem parecer vários filmes
em um. Em algumas passagens, não se teme o trash – Lee
Jones chega a filmar seu personagem queimando o rosto do defunto,
única forma de livrá-lo das formigas enquanto o transporta até
seu lugar de origem. Esse senso do absurdo, absorvido em meio
ao senso de razão (em sua construção de sentidos para aquele espaço
e para aquela jornada), tempera Três Enterros com saudável
estranhamento.
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